sexta-feira, 9 de março de 2018

O Vale do Amazonas e Solimões (parte 3/9)

...continuação
Ao anoitecer fui ao bucólico e aconchegante largo de São Sebastião, em cujo centro se ergue o imponente teatro Amazonas. Saboreei caldeirada de peixe. As duas caipirinhas, bem temperadas, carregadas no limão suculento, animaram a já animada alma.
A esplendorosa cidade de Manaus nada mudara em dois anos. Obras e mais obras, a maioria interrompida, suspensa, inacabada. Tapumes envelhecidos cercavam arremedos de praças, ruas, construções antigas e novas. Caminhar nas assim chamadas calçadas manauaras se transformava em verdadeiros enduros de resistência e equilíbrio. Somado à crônica ausência de árvores nas ruas ou de praças refrescantes, do urbanismo submisso aos automóveis, circular pela cidade durante o dia se mantinha uma temeridade. Eu continuaria batendo na mesma tecla até que uma administração democrática e popular expulsasse os criminosos da prefeitura e da câmara de vereadores, reorientando os rumos urbanísticos da cidade. Enquanto isso, porém, Manaus continuaria anti-amazônica e anti-indígena, desumana para a sofrida população manauara.
Mas nem tudo beirava à catástrofe social em Manaus. A beira do rio Negro, o mesmo rio a que a cidade dava as costas, permanecia fascinante. Vida, muita vida, pulsava na feira da Manaus Moderna, na avenida que margeia o rio, no vibrante porto da Escadaria. Balsas, navios, barcos, canoas, lanchas, voadeiras, de diversos tipos e tamanhos. Passageiros embarcando e desembarcando repletos de bagagens e histórias. Carregadores enchendo e esvaziando caminhões e embarcações. Vendedores de passagens, de passeios turísticos, de comes e bebes. Barbearias nas calçadas ou nas balsas flutuantes. Peixes recém-pescados vendidos ou leiloados na beira das águas. Trabalhadores, curiosos, turistas, oportunistas, putas, vagabundos, aproveitadores. Gente, muita gente, em atividade frenética. Manaus fervia assim havia décadas. E aquela miríade me embevecia sempre.
A deliciosa mudança de planos naquela viagem desamarrada começou com lampejos no último dia do navio pelo vale do Amazonas. E menos de vinte e quatro horas depois se tornava realidade. Consultei as opções de navios com destino a Tabatinga pelas imediações da estação hidroviária. Pechinchei, choraminguei, antes de atingir valor aceitável, para ida e a volta em suíte no navio escolhido.
Na manhã seguinte, toca enfrentar o asqueroso café da manhã do hotel. Logo ao descer ao salão do subsolo, sem janelas e com a televisão ligada, avistei as frutas velhas e passadas na bancada. Havia cerca de dez fatias de abacaxi no prato, oito delas com mancha preta ocupando mais da metade do círculo. O garçom vestia uniforme puído, anacrônico e inadequado ao clima amazonense, na base de calça preta, camisa branca e gravata borboleta. Comi o que deu para comer, pouco ou quase nada.
Lá fomos eu e o colega manauara a restaurante especializado em caldeiradas. Duas caipirinhas bem temperadas precederam a generosa e saborosíssima caldeirada de tucunaré. A porção servia três pessoas, mas detonamos tudo em minutos.
Conversamos sobre política nacional, o golpe de Estado de 2016 no Brasil, as possíveis saídas para conquistar a democracia social. Abordamos as qualidades e as mazelas de Manaus. Também sobre o festival do Boi-Bumbá de Parintins. Ele e a namorada desfrutaram por cinco dias da manifestação cultural, ainda que pasteurizada pela indústria cultural.
Anoitecia ao visitarmos o parque Rio Negro, inaugurado anos antes, justamente onde funcionou o antigo cais de São Raimundo, do qual partiam as embarcações rio Negro acima. Na época local imundo, decrépito, sobre lamaçal, ao lado de favelas, puteiros, botecos barra-pesada. Sem ser enorme, o parque seduzia pela vista do rio Negro, pelas boas instalações para os manauaras caminharem, se exercitarem, relaxarem, pescarem, se socializarem. Mas, principalmente, pela possibilidade de a cidade começar a se abrir para a natureza e se reaproximar das belezas do rio Negro, rompendo com a lógica estúpida de lhe dar as costas. Que servisse de exemplo para outras iniciativas de espaços públicos e democráticos na margem de águas tão fascinantes.
Comprei o último número da revista Caros Amigos e, no sebo na praça da Polícia, o livro Estas Histórias, de Guimarães Rosa. Almocei por ali mesmo, depois de ter traçado meio litro de açaí fresco com farinha de tapioca, seguido de trezentos ml de guaraná com limão e mel.
À noite, bares e restaurantes do largo São Sebastião apresentavam pequeno e silencioso movimento, apesar do céu escandalosamente estrelado, da lua quase cheia, da temperatura agradável compensando o caldeirão diurno. A carruagem estacionada próxima à entrada do teatro Amazonas atraía fotos.
Enquanto relaxava nos bancos sob as árvores, ao lado do sebo em construção metálica do largo São Sebastião, três músicos locais, com vinte e poucos anos, vestindo roupas surradas e sujas, se sentaram e cantarolaram canções próprias ao violão, informalmente, para eles mesmos, para passar o tempo. Melodias, letras, vocais, da mais alta qualidade. Eu ficaria ali por horas ouvindo aqueles desconhecidos talentos manauaras.
A ideia de assistir no teatro Amazonas ao espetáculo com texto e atuação de Paulo Betti veio a calhar. A peça divertiu a despeito da péssima acústica do teatro, mais voltado a concertos musicais do que a vozes sem microfone. E havia a imponência da construção interna, o teto, a disposição dos diversos setores pelos andares, a suntuosidade. A decoração, totalmente estrangeira, nos temas, motivos, materiais, autoria, ignorava o universo artístico, temático e a abundância de materiais da Amazônia, mesmo ao redor de Manaus. O bom público riu, se emocionou, aplaudiu intensamente o autor e ator sorocabano.
Separei três sanduiches de queijo, com pães dormidos mesmo, do sofrível café da manhã do hotel. Seria meu primeiro almoço no navio, que provavelmente serviria apenas o jantar, a refeição tradicional das primeiras noites fluviais. Caminhei à estação hidroviária, o porto criminosamente privatizado pelo coronel da época, encarecendo passagens e fretes, em construções amplas, mas eternamente vazias pela ausência de interessados.
Entrei no navio, embarcação mais organizada, mais confortável, mais segura, mais robusta que as demais.
Após a conferência informatizada fui designado à suíte marcada. E que suíte! Saleta de entrada com frigobar e bancada, cama de casal em quarto amplo, com mesa e duas cadeiras, ar condicionado, espelho grande, outra bancada em “L”, banheiro espaçoso, pequenas janelas basculantes no quarto e no banheiro, sacada grande e privativa. Várias tomadas e cabides disponíveis enriqueciam a funcionalidade da cabine. Mais dois salva-vidas, como norma de segurança. O navio contava com enfermeira, duas salas de estar, salão de beleza, lanchonete, copa e mesa de refeições no formato de bufê.
A cheia no setor de redes do piso Superior fez com que liberassem aos novos passageiros também a área coberta do piso de Lazer para atar redes. Infelizmente. Duas televisões no piso de Lazer, na área coberta e na área descoberta. Infelizmente. Na parte descoberta, pequena churrasqueira, aparelhos de ginástica aeróbica.
O embarque seguia a passos rápidos, mas a lotação máxima de 676 passageiros ainda estava longe de ser alcançada.
O navio partiu ao meio-dia, descendo o rio Negro e deixando para trás a silhueta nada atraente de Manaus. Mas que suíte ampla, confortável, iluminada, arejada! Nada imaginável pelos brasileiros que inventam mil desculpas para não visitar a Amazônia com tempo e dedicação. E ali se tratava de navio regular de passageiros e cargas, de linha, utilizado pelo amazonense comum.
E veio o encontro das águas escuras do rio Negro com as barrentas do rio Solimões. A linha irregular que as separava se estendia por quilômetros. A partir dali, as águas chamadas brancas do Solimões, mais frias e piscosas, provenientes dos Andes peruanos e abastecidas por centenas de afluentes de ambas as margens. O nível máximo das águas na Amazônia ocorre no mês de junho. E já dava para notar o início da vazante pelas marcas nas bordas dos paredões argilosos, nas árvores, nos arbustos.
Ao entardecer, duas tripulantes da copa me trouxeram o jantar em domicílio. Sopa de carne com macarrão e legumes, bem substanciosa, tigelinha com pães, duas bananas pequenas e dulcíssimas, jarra com água. Tudo coberto carinhosamente por papel filme.
O por do sol na proa do navio incendiou os céus, enquanto a lua cheia nascia na popa.
A televisão, tanto no piso Superior, como na área coberta do piso de Lazer, não chegava a incomodar. Poucos assistiam ao lixo nosso de cada dia. Os cérebros ainda pensantes agradeciam por se livrar das doses diárias de embrutecimento vindas das telinhas. Passageiros se aglomeravam na área externa da popa, a maioria jovem e bestificada diante dos celulares.
E o lixo continuava sendo atirado ao rio, impunemente. Sacos plásticos, embalagens, latinhas de alumínio, garrafas plásticas. A frase em letras garrafais na popa do piso de Lazer, rogando para não jogar lixo no rio, era solenemente ignorada. Frases escritas, no entanto, não eram suficientes. O erro daquele navio e das demais embarcações da Amazônia era disponibilizar copos plásticos descartáveis. O passageiro enchia o copo nas torneiras do bebedouro coletivo, bebia, descartava o copo no cesto do lixo ou no rio. Jamais mantinha o copo consigo para usos futuros. O navio deveria exigir que os passageiros trouxessem o próprio copo, caneca ou garrafa, a serem utilizados durante toda a viagem. Simples e funcional.
Na cabine ao lado da minha, viajavam um casal e outra mulher, todos de traços fortemente indígenas do alto Solimões. Trintão, comerciante de congelados e afins, ele bebia sem parar latinhas de cerveja que trouxera de Manaus. A esposa, bem jovem, exibia três cortes profundos no abdômen devido à recente cirurgia na capital. Os três residiam em Benjamin Constant.
Após o jantar começou gritaria vinda da chamada “sala de oração”, numa das extremidades do corredor interno das cabines do piso de Lazer. Era das ovelhinhas engrossando o comércio evangélico da fé. Dava pena ao deparar com o rebanho entregando as consciências, e o dinheiro também, à esquizofrenia que enriquecia um punhado de pastores e os proprietários das empresas evangélicas. Os crentes se deixavam levar por palavras de ficção, estórias inventadas e mal interpretadas, se comportando como os mais desvairados usuários de drogas pesadas. Se os proprietários do navio abraçaram a corrente mais fundamentalista e intolerante, a das empresas evangélicas, outras religiões seriam aceitas naquela sala? Impossível. Era sala de um fanatismo só.
A cidade de Anamã apareceu ao alvorecer na margem esquerda do rio. Encantou o canto dos pássaros, dos mais variados, vindo de todos os lados, sobretudo quando o navio percorreu paraná mais estreito, cujas margens abraçavam a embarcação. A intensa e agradável sinfonia da natureza iniciava mais um dia Solimões acima. Nas margens desses paranás, terras ainda muito alagadas, pequenas plantações de mandioca e banana, submersas. Os trabalhadores rurais das comunidades eletrificadas pelo programa Luz Para Todos apenas aguardavam o avanço da vazante para cultivá-las novamente. Também alagados, os campos de futebol, identificados por parte das traves acima da linha das águas, os pastos, restringindo o gado aos trechos mais altos e secos ou obrigando a transportá-lo para mais longe. Mas as casas, escolas, comércio, centros sociais, permaneciam acima das águas. A sabedoria cabocla se manifestava na construção de palafitas ou flutuantes.
Raras as comunidades ribeirinhas que contavam com igreja católica. Mais raro ainda as sem qualquer igreja ou templo religioso. A esmagadora maioria exibia, em lugar de destaque, as facções das empresas evangélicas, sugadoras dos bolsos e das consciências das populações.
A prestativa e sorridente copeira me trouxe o café da manhã. Mamão, dois pães, três bolinhos de milho, garrafa térmica contendo café, leite e açúcar já misturados. Eu, porém, pensava em alterar aquele isolamento. Comeria as três refeições diretamente na copa, junto aos demais passageiros. Evitaria assim ficar na cabine, retido, esperando a refeição e depois aguardando retirarem a bandeja.
Anori deu sinais de vida. Na verdade apenas palafitas frontais, atrás das quais o lago e a cidade propriamente dita. Voltei à varanda privativa. Refrescado pela brisa externa li mais e bons artigos da revista Caros Amigos.
Horas antes de passar ao lado da cidade de Codajás, a capital brasileira do açaí, voadeiras atracaram nos pneus laterais do navio, oferecendo o creme para deleite dos passageiros e tripulantes. Em minutos desatracavam com os isopores completamente vazios.
continua...

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