sexta-feira, 23 de março de 2018

O Vale do Amazonas e Solimões (parte 7/9)

...continuação
Nem reparei a que horas ou por quanto tempo o navio fez escala noturna em Fonte Boa. Dormi maravilhosa e profundamente.
Durante o dia, na parte sombreada da cabine, eu saboreava o Estas Estórias, do Guimarães Rosa. Destaque para o impressionante conto Bicho Mau, cujo personagem principal era uma cobra cascavel.
Como na subida, foi servido peixe uma única vez na viagem de baixada. Pirarucu ensopado, durante o almoço. Bem temperado, acompanhado de arroz e vinagrete. O suco aguado de cupuaçu e o pedaço de goiabada adoçaram o banquete.
O navio ainda percorria o Solimões ao amanhecer. Indícios de zona urbana começavam a aparecer na margem esquerda no meio da manhã. Desembarquei em Manaus no início da tarde. Me despedi dos tripulantes. Caminhei por toda extensão do porto privatizado e abandonado, às moscas, ocioso, subutilizado. Escolhi outro hotel para me instalar.
O navio, enorme, de ótimo aspecto, confortável, seguro, com suíte ampla, limpa, com tudo o que precisava dentro, além de varanda espaçosa e desnecessariamente privativa, com comida repetitiva e carente de peixes regionais, com a ditadura evangélica despejando diários rituais de horrores, com o lixo fundamentalista vomitado em todas as manhãs da caixa de som da lanchonete, com passageiros dos mais reservados com quem cruzei na Amazônia, deixaria saudades pelos quatorze dias a bordo, rio Solimões acima e abaixo. Inesquecível.
Almocei na rua Ferreira Pena, perto da esquina da Ramos Ferreira, rua que, entre a praça da Saudade e a rua Tapajós, a um quarteirão da avenida Getúlio Vargas, proporcionava raro trecho arborizado, sombreado, dando prazer em caminhar. Mas aquela paisagem era exceção na Manaus do concreto e asfalto. Os quarteirões que incluíam a rua Monsenhor Coutinho e praça do Congresso reservavam casarões e palácios do final do século XIX e início do século XX, da época em que a elite de Manaus se esbaldava com os ciclos da borracha. Destaques para o Instituto Educacional do Amazonas, a Academia Amazonense de Letras, mas principalmente o Instituto Benjamin Constant, escola técnica com belíssimo portão de ferro, escada ao amplo jardim, seguido de outras escadarias ao centro do prédio horizontal.
O largo São Sebastião, sem eventos ou apresentações musicais, sobrava em charme naquela noite quente, mas não tórrida, com direito à brisa suave. Grupos de amigos, casais, turistas, perambulavam despreocupadamente, ou ocupavam bares e restaurantes. Em silêncio, sem música alta, sem poluição sonora. O som da noite, das folhas das árvores, dos passos, dos murmúrios, das esparsas e discretas risadas.
Pela manhã, o motorista do furgão me pegou na portaria e, com mais quinze passageiros, passamos ao micro-ônibus. O veículo tomou o rumo norte. Duas horas pela BR-174, a que liga Manaus a Boa Vista e à Venezuela, atingimos a cidade de Presidente Figueiredo. O percurso contou com lagos, lagoas e buritizais próximos ao acostamento da rodovia.
O passeio iniciou pela cachoeira Iracema, quase ao lado de chalés do hotel anexo. Chalés que mais pareciam caixotes que os governos das elites econômicas empurram para os pobres sob o nome de habitação popular. A partir dali trilha curta pela floresta, ao lado de grutas e formações rochosas. A cachoeira, larga, de queda curta e violenta, seguida de suaves corredeiras, nada tinha de especial. Pouca gente naquele dia útil permitiu entrar nas águas e apreciar o local com calma.
Retorno à cidade, ao lado das corredeiras do Urubuí, para almoço farto e saboroso, regado a um litro de suco de cupuaçu, fruta abundantemente cultivada nos arredores.
À tarde, as cachoeiras do Santuário, mais afastada da zona urbana e oferecendo belezas naturais mais compensadoras. Também a trilha curta levou a várias quedas d’água, formando desenhos diversos, corredeiras, piscinas naturais, poços profundos para banhos e mergulhos de trampolins na própria rocha. Ali me senti num complexo de quedas d’água, maiores e menores, violentas e brandas, emolduradas pela floresta amazônica, dispondo de pontos de mergulhos, nados, massagens refrescantes e revigorantes. Pouca gente em terra e nas águas.
Nos trechos de remanso e afastados da correnteza das cachoeiras, se formavam linhas sinuosas e irregulares de espuma branca, configurando desenhos abstratos e instigantes sobre as águas escuras. A região de Presidente Figueiredo guardava mais de cem cachoeiras, grutas e cavernas. A cidade leva esse nome em homenagem ao primeiro governador da província do Amazonas, João Batista Figueiredo Tenreiro Aranha, após a separação da província do Grão Pará em 1850. Nada a ver, portanto, com o nome do último general de plantão da ditadura civil e militar iniciada com o golpe de Estado de 1964.
À noite em Manaus, pedi caipirinha e observei o agito bem manauara no largo São Sebastião. Ocorriam apresentações musicais com artistas de qualidade, legítimos representantes da música regional de raiz. Naquela noite, entre outros gêneros, prevaleceu o carimbó. Ritmo contagiante, ainda mais acompanhado pelas doces amazonenses, usando e abusando da quebra de quadris e na ginga sensual dos corpos.
A apresentação terminou e o público debandou. Desci a rua Barroso. Na esquina da rua do Banco do Brasil a galerinha se deixava levar pela apresentação ao vivo de canções da MPB, ali mesmo na calçada. Nada de palco ou formalidades desanimadoras. Desci mais, até a avenida Sete de Setembro. Deserto de almas naquele trecho que trepida de gente durante o horário comercial. Subi a avenida Eduardo Ribeiro, em cuja calçada uma peruana me ofereceu su cuerpo. Dobrei à esquerda na José Clemente. Na esquina com a Lobo D’Almada, na própria calçada e rua, rolava apresentação de música brega. Gente bonita, liberada, desencanada. No quarteirão abaixo, ainda na Lobo D’Almada, puteiros, hoteizinhos sórdidos, putas nas calçadas ou dentro do bares sombrios chamando os passantes para um “amor gostoso”.
Num dia sem planos, maravilhosamente sem planos, desci vagarosamente à beira do rio Negro, mais especificamente ao longo do porto da Manaus Moderna, ou Escadaria, local da Manaus verdadeira, fluvial, pulsante, excitante. Tomei meio litro de açaí, trezentos ml de guaraná com mel e limão, e me dei por almoçado. Voltei ao hotel para me refrescar do calor estratosférico de Manaus, contra o qual o chapéu e o protetor solar pouco funcionavam.
Comi pirarucu de casaca em barraca na praça do Congresso. À noite, tacacá com o casal amigo. Emendamos no bar com som ao vivo de samba de raiz. As cachaças vinham aquecidas à temperatura ambiente da noite manauara. Eu me hidratava com goles de água mineral gelada. Pelas mesas, olhares com segundas e terceiras intenções não faltavam. Nada de fingimentos em falsos papeis. Todos e todas querendo ser felizes na simplicidade. Curto e grosso foi o tocador de tamborim do regional de samba que se apresentava na calçada. Durante o intervalo das músicas, no momento em que eu ia ao banheiro, me abordou e me abraçou feito velho amigo. Perguntou meu nome e, na lata, me pediu dez reais. Neguei sem hesitar. Imediatamente o sorriso pegajoso desapareceu do rosto dele. E me deu as costas sem se despedir.
O dia começou de gala. Suco de cupuaçu e creme de açaí no café da manhã.
Acompanhado do casal amigo nos dirigimos a restaurante bem a montante da praia da Ponta Negra, naturalmente ventilado, sem ar condicionado. O garçom paraguaio nos atendeu bem. Duas caipirinhas bem temperadas precederam e acompanharam tambaqui assado, com baião-de-dois, farofa de banana, pimenta não picante, vinagrete.
Seguimos ao igapó do Tarumã, de onde, em meio às arvores da floresta alagada, pegamos canoa ao flutuante da margem esquerda do rio Negro. E era flutuante mesmo, com direito a oscilações conforme a passagem de iates, jetskys, outras embarcações ao lado. Mergulhei, nadei, boiei nas águas escuras, límpidas e sem mosquitos do rio Negro. As temperaturas internas e externas às águas estavam espetaculares. Mais caipirinhas, papos soltos e sem compromisso. Mais mergulhos nas águas negras e refrescantes enquanto o sol se punha atrás da margem oposta.
O casal me entregou são e salvo na porta do hotel. E não saí mais naquela noite. Nem para comer.
Em outro jantar, duas caipirinhas hidrataram a moqueca caboca, de pirarucu, com leite de castanhas, legumes, banana, arroz, pirão, ressaltados com a pimenta-de-cheiro. A fome era tanta que nem percebi do que se tratavam as rodelas de cor creme envoltas em invólucro delgado e preto. Era banana-da-terra com a própria casca. Comi assim mesmo. Engoli tudo. Matei a fome com prazer.
No largo São Sebastião, a Virada Sustentável apresentava grupos musicais amazonenses carregando nos ritmos regionais e nas letras provocadoras, rebeldes, politizadas. Bom público. Nenhum turista. Era a ala consciente da juventude manauara.
Antes do amanhecer fui ao terminal AJato, ao lado do porto da Escadaria. As lanchas das 6h, a Tefé e a Manicoré, despachavam as bagagens. A lancha para Tabatinga, em outra balsa flutuante, manobrava para a partida rumo à viagem de desconfortáveis trinta e seis horas. Tracei calmamente tapioca com ovos e o copo de café com leite, vendidos na bancada instalada sobre a balsa. Manaus amanhecia aos poucos. Após o despacho de bagagens a lancha partiu às 7h.
O tempo nublado se tornou ameaçador e caíram pancadas de chuva, sem, contudo, comprometer a segurança da navegação. A lancha não era das maiores e contava com assentos nada anatômicos. Serviram almoço ao meio-dia. E a bandeja sobre o próprio colo, sem mesinha ou suporte. Em seguida o tripulante apareceu com a garrafa de três litros de refrigerante e a pilha de copos descartáveis. Ainda me equilibrando com a bandeja da comida segurei o copo enquanto ele derramava o refrigerante. Uma mão ficou permanentemente ocupada. Com a outra, comi bem o almoço composto do trivial de dia de semana. Os tripulantes recolheram tudo depois. Às 15h foi a vez do mingau, na verdade mungunzá, novamente em copos descartáveis.
A TV a bordo da lancha começou transmitindo o lixo da indústria cultural da música e emendou com cinco filmes, também descartáveis, produzidos naquele regime terrorista ao norte do México. O primeiro sobre surfista atacada por tubarão e confinada a minúsculo atol à espera de socorro. Seguiu uma pancadaria violenta e inverossímil. Depois filme sobre mineiros chilenos presos em galerias subterrâneas, cujo elenco se compunha de atores de língua espanhola, interpretando personagens com nomes de origem espanhola, ambientado em país de língua espanhola, mas todos eles falando, inacreditavelmente, em língua inglesa. Após uma fábula infantil debiloide, outra pancadaria gratuita.
Cochilei pouco entre as rápidas paradas em Itacoatiara, Parintins e Juruti. A tripulação primava pela educação, simpatia e atenção. De qualquer forma, viagens em navios e barcos são mais confortáveis e prazerosas do que em lanchas.
Desembarquei ao entardecer em Oriximiná, na margem esquerda do rio Trombetas, estado do Pará. Imediatamente após me hospedar, saí à procura de local para jantar. O faro me conduziu à praça da Matriz de Santo Antônio.
Oriximiná possui traçado quadriculado das ruas parecidas entre si. Tudo propositalmente asfaltado, para fluir melhor os veículos motorizados, sobretudo automóveis e motos. Mas com esgoto a céu aberto, correndo em valetas profundas. Na beira do rio Trombetas, movimento mais fascinante, de passageiros esperando as saídas de embarcações, indígenas conversando nas línguas originais, negros de antigos quilombos não muito distantes, como o distrito de Curuá, além de tipos variados e característicos das imediações de cais fluvial.
Os únicos hóspedes que reparei pelas áreas comuns do hotel pareciam gente a trabalho na região, talvez de folga da corporação transnacional que controlava e saqueava a bauxita, minério de alumínio, havia mais de quarenta anos, rio Trombetas acima.
Praticamente nada de histórico oferecia Oriximiná. Até as construções velhas eram novas. Mas não era cidade feia, exceto as horrendas sarjetas ao longo das quais corria esgoto escuro e fétido. De bom aspecto, construções bem conservadas, calçadas descontinuadas e trafegáveis a pé, o que não era pouco para a região. A cidade vivia a expectativa das celebrações do círio noturno de Santo Antônio, padroeiro de Oriximiná. Praças arrumadas, calçadas, muros e escadarias recém-pintadas, jardins podados e limpos, retirada de lixo acumulado, estandartes e bandeirolas, carros de som convocando a população.
continua...

2 comentários:

  1. Prezado Viajante,

    Um prazer mostrar a você um lado mais humano de Manaus. Venha sempre para mais conversas regadas a caldeiradas, peixes, sucos e banhos no imponente rio Negro.

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  2. Oi colega,
    Obrigado pela visita e pelos comentários.
    Irei sempre, sim. Para essas e outras delícias do estado do Amazonas.
    Comente sempre!

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