sexta-feira, 2 de março de 2018

O Vale do Amazonas e Solimões (parte 1/9)

Em meados de junho eu partia de São Paulo rumo a Belém, sem saber exatamente para que tipo de viagem. E nada de data de volta ou de duração definida da viagem.
Durante o voo li um pouco do fascinante Geografia da Pele, de Evaristo de Miranda. O calor úmido da chegada ao Pará até que caiu bem em contraste com o frio seco de São Paulo.
Desci a pé à região do mercado Ver-O-Peso. Perambulei e observei o movimento sob aquele sol e calor tipicamente paraenses. Combinei várias delícias da culinária paraense, entre dourado no tucupi e jambu, maniçoba, arroz de camarão, vatapá.
Belém continuava charmosa, acolhedora, bonita ao redor do centro, ocupada por povo simpático. As praças, sempre lindas, sofriam com o desleixo das recentes administrações conservadoras, municipais e estaduais, que se encastelaram no poder.
Peguei ônibus ao distrito de Icoaraci. O veículo cruzou os bairros do Umarizal, Telégrafo, Sacramenta, Maracangalha, Parque Verde, Agulha, Águas Negras. Na avenida Augusto Montenegro, a lentidão das obras da construção do corredor do BRT causava transtornos. Desembarquei no extremo leste da orla fluvial de Icoaraci. Caminhei pelo calçadão tranquilo, com pouco movimento. Pequenas embarcações transportavam passageiros às ilhas do horizonte da floresta.
Tomei duas razoáveis caipirinhas antes de cair de cabeça na caldeirada de peixe. Deliciosíssima. De lamber os beiços. Às vezes desviava os olhos para as águas, a vegetação, os barquinhos singrando a baía.
De volta à Belém, circulei pela ampla, belíssima e prestigiada praça Batista Campos. O senão ficava por conta dos onipresentes televisores em todos os quiosques de água de coco e hidratantes em geral. E eram dezenas ao redor da área verde. Verdadeiro massacre, embrutecedor, imbecilizante, alienado e alienante. Os fregueses deitavam os olhares bovinos na telinha, na busca da dose diária de deformação mental.
Houve no centro de Belém o arrastão da Pavulagem, boi paraense de matraca, atrás do qual a população seguia cantando e dançando da Estação das Docas à praça da República, via avenida Presidente Vargas. A praça da República lotava de frequentadores pela feirinha de artesanato, na verdade de produtos industrializados. Barracas e ambulantes de comes e bebes abasteciam os passantes.
Retornei ao centro histórico de Belém, a chamada Cidade Velha. Além do próprio entorno do mercado Ver-O-Peso, a Catedral, forte do Castelo, Casa das Onze Janelas. Me sentei sob a sombra providencial das mangueiras e apreciei o pequeno movimento de barcos nas águas da baía de Guajará.
Eu e a colega paraense nos dirigimos ao final da avenida Alcindo Cacela, na beira das águas da baía de Guajará. Tomamos catraia a um dos vários bares e restaurantes do outro lado, erguido em canal da ilha do Combu.
As instalações do restaurante eram em palafitas de madeira, interligadas por passarelas a fim driblar as águas nas enchentes. Mas com energia elétrica e carinho, no atendimento, no preparo das bebidas e refeição. Enxugamos caipirinhas, detonamos a caldeirada de dourada, que nos deu, além do prazer de saborear a iguaria amazônica, enorme suadouro.
Barcos de diversos tamanhos zanzavam para lá e para cá no canal bem à frente. Mais palafitas se erguiam mata adentro. Segundo o proprietário cafuzo, escola até a quarta série funcionava mais acima, ainda na ilha do Combu, a qual os estudantes se deslocavam em barcos bancados pela prefeitura. Acima dessa série, somente na zona urbana de Belém, às quais seriam transportadas também de maneira fluvial pela administração municipal.
O barqueiro nos pegou em horário previamente combinado do fim da tarde.
Me dirigi à estação hidroviária de Belém. O local amplo, limpo, iluminado, já recebia bom número de passageiros e acompanhantes. Antes, comprei o que deveria para me alimentar durante dias. Ao contrário da maioria das embarcações da Amazônia, aquele navio cobrava pelas refeições, à parte do valor da passagem.
Ao embarcar, a tripulante me deu a chave da suíte, contando com duas camas beliche, frigobar, ar condicionado, banheiro. Um grupo de estadunidenses, na faixa de vinte e poucos anos, ocupava camarotes e suítes.
Assim que o navio zarpou, as mesinhas do salão coberto, ao lado do bar e lanchonete, logo se ocuparam, ainda sem maiores entrosamentos. Ninguém se conhecia naquela primeira noite.
E milagres existem! Não havia televisores nas áreas de lazer, tanto interna e coberta, como na descoberta, na popa. Sem aquela praga embrutecedora os passageiros se olhariam mais, tentariam mais, se integrariam mais. O som emitido das caixas do bar e lanchonete do piso de Lazer vomitava o descartável de sempre, mas em volume suportável.
Pelos pisos da embarcação, nenhuma novidade na relação predatória entre os seres humanos e a natureza. O festival de lixo, latinhas, plásticos, restos disso ou daquilo, jogado nas águas da baía de Guajará, continuava firme e forte.
Armei o varal na extensão da suíte. Elegi a cama superior do beliche como prateleira. Me deitei na cama inferior e me cobri com a rede trazida no fundo da bagagem para eventuais emergências.
Acordei cedo. No café da manhã, a única refeição a bordo que decidi pagar, optei por três frutas, suco de maracujá, pão com ovo, café com leite adoçado. Àquela hora da manhã, muitos passageiros já circulavam, se sentavam na área de lazer, se apoiavam nas beiradas, observavam a paisagem de águas sem fim, conversavam sobre a vida.
Parada curta na cidade de Breves, ao sul da ilha de Marajó. Vendedores ofereciam produtos diversos.
Estreitos canais guardavam palafitas esparsas e fotogênicas, ainda mais com roupas coloridas secando ao sol. Aninga, vegetação de caule único e longo, com folhas imensas, era natural dos alagados à margem dos rios. Resistentes ao contato com a água, os caules delas serviam para construção de jangadas. Canoas a remo, pilotadas por crianças, se aproximavam na esperança de os passageiros lhes jogarem roupas ou comida. Algumas atracavam nos pneus de proteção do navio. Os ocupantes subiam para vender açaí e camarão seco.
O bando de estadunidenses permanecia somente entre eles, isolado. Os piauienses de Teresina estavam a caminho de trabalho em Roraima. Comiam camarão seco, bebiam cerveja, ou uísque com água de coco, estrategicamente gelados em garrafas térmicas. Não paravam de beliscar e beber um minuto sequer. O cearense de Sobral, residente entre Recife e Boa Vista, já havia morado em Rio Branco, Sena Madureira, Manaus e Belém. Falante e comunicativo deitou a falar sobre tudo, sem interrupção, emendando assuntos, sem intervalos.
Evitei o almoço pago e comi dois sanduíches de pão de forma com queijo e salame, duas barras de cereais, queijinho, achocolatado. Seria assim enquanto durasse meu estoque.
E veio o calor tórrido e a preguiça tão típicos das tardes amazônicas. Nada melhor que um cochilo básico para dar conta da modorra.
Sentado na porta da suíte, conversei com deus e o mundo que passava por ali. O paraense de Alenquer fez o caminho contrário ao êxodo humano. Residia em Tauá, sertão do Ceará. O morador de Monte Alegre retornava de trabalho em Breves. Era técnico em agropecuária, nascido em Rondônia, filho de pai carioca e mãe paraense. Atuava em apoio às culturas de limão e afins na região do baixo Amazonas.
O piso de Lazer, sem a maldita televisão, se enchia de passageiros, na área coberta e descoberta, para socializar, conversar, ouvir música, observar o negrume da noite, tomar a fresca, relaxar.
Parada em Gurupá. Desembarque muito superior ao embarque, liberando espaço no setor de redes e nos camarotes. O grupo de mais de vinte estadunidenses, acompanhado de guias brasileiros, ali ficou, com muita bagagem e objetos variados. Definitivamente não eram turistas. Biopirataria? Missão religiosa para lavagem cerebral dos moradores? “Missão humanitária” daquela bem humanitária que o regime do país deles, aquele terrorista ao norte do México, costuma oferecer ao mundo entre golpes de Estado, invasões e bombardeios?
Um bêbado bem bêbado desembarcou amparado por companheiros e por pouco não tomam banho de imersão forçado. Caminharam poucos metros na balsa flutuante e subiram em barco menor que se preparava para partir. O bar da popa de outra embarcação prestes a sair oferecia som alto para lá de descartável. Nas vinhetas reproduzidas varias vezes durante as músicas, a voz masculina, grave, mole, de bêbado, alertava:
“isso vai dar problema”.
Amanheceu por entre nuvens delgadas. Parada na cidade de Almeirim. Vendedores de queijo ofereciam peças de diversos preços e tamanhos. A maioria dos passageiros ainda se mantinha nas redes e cabines.
Assim que clareou o dia, em frente à minha suíte, local privilegiado e procurado pelos vizinhos, se iniciou debates sobre a corrupção no Brasil, tema pautado pela televisão, como se fosse o prioritário do povo brasileiro. O empresário piauiense defendeu a ditadura Temer, as reformas a favor do grande capital, a criminalização de Lula como o grande responsável pela corrupção no Brasil. Argumentei que a corrupção nunca foi causa de nada e sim consequência de fatores políticos, econômicos e sociais. Que esse problema jamais fora inventado na era Lula e Dilma. Que o capital era o principal responsável pelo suposto desequilíbrio das contas da previdência pública, pelas injustiças sociais, no Brasil e no mundo. O empresário, acostumado a falar sozinho, ficou sem ar, engoliu saliva com dificuldade, antes de ser salva pela esposa o chamando para o café da manhã.
E as cadeiras começaram a se juntar praticamente em frente à minha suíte. O empresário piauiense, eventualmente a esposa, o ajudante, o casal paraense e obeso com a filha dele, o paraense jovem de feições indígenas. O piauiense grelhou carne na cozinha, contrafilé e peixe. Trouxe um robusto isopor com latinhas de cerveja, mais o saco com camarões secos adquiridos das canoas dos ribeirinhos. E começou a deliciosa sessão de abobrinhas, gozações, lorotas, estórias, comentários sobre o barco, o rio Amazonas, a natureza.
O empresário se desesperava por sinal de celular a fim de prosseguir com os negócios. Viajavam ele, a esposa e a filha do casal. As outras três filhas dele, de duas esposas diferentes, ficaram com as respectivas mães, no Piauí.
A filha adolescente do casal obeso, também obesa e comilona, era filha somente dele. A madrasta, amapaense, morava com eles havia menos de um ano, e não se dava bem com a enteada. Iam a Manaus, em mudança definitiva. Ele comercializava carros usados.
O paraense jovem viajava a Santarém como organizador de eventos. Deixara a mulher e o filho só dela na periferia de Belém. Apesar dos marcantes traços indígenas, já foi chamado de coreano e japa pelos colegas da capital.
Parada em Prainha, na margem esquerda do rio Amazonas. O piauiense desceu, pegou moto-táxi e comprou mais duas dúzias de latinhas de cerveja. Retornou voando, no exato momento em que o navio dava o segundo apito de partida. A prancha já tinha sido retirada e a embarcação começava a se afastar do cais. Ele veio correndo, carregando sacolas pesadas em ambas as mãos. Teve que saltar mais de um metro para não perder o navio. A plateia nos três pisos somente na torcida. Uma senhora, em sentido oposto, percebeu tardiamente a saída do navio. A idade, o peso e a falta de agilidade a impediram de pular. Uns rapazes a içaram ao tronco de proteção do cais e de lá a puxaram para terra numa operação tensa e delicada. Faltou pouco, muito pouco, para todos despencarem nas águas.
continua...

4 comentários:

  1. Bora continuar a leitura...

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  2. Oi Cristiane,
    Leia e comente sempre. Vou aguardar ...
    Obrigado.

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  3. Gosto da variedade de estímulos deste relato tão rico em interações, que dá vontade de ter estado ali também!
    Parabéns!

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  4. Bom dia!
    Obrigado pela visita e pelos comentários.
    Então vai adorar ler os demais relatos do blog. Procuro sempre escrever o que vejo e sinto, da maneira mais espontânea possível. A realidade é sempre mais fascinante que a fantasia.
    Coemnte sempre!

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