quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Tunísia e Marrocos (parte 4/7)

...continuação
Na estação ferroviária, comprei passagem para Bizerta (Bizerte). Completamente perdida e chutando qualquer resposta para me despachar, a garota do balcão de informações interpretou os dados do bilhete, numa mistura de inglês, francês e árabe, da maneira mais estapafúrdia possível. Confundiu o número do assento com a plataforma, o número do vagão com a classe. Repeti as mesmas perguntas ao funcionário das plataformas e tudo se esclareceu. Trens de linhas suburbanas desovavam passageiros de tantos em tantos minutos.
E veio o trem velho e mal cuidado para Bizerta (Bizerte). A numeração dos vagões e dos assentos não era respeitada e me sentei em banco rasgado de um vagão qualquer e envelhecido. Papei o sanduíche de salame, queijo, salada e, é claro, a picante harissa para incendiar tudo. O cobrador verificava os bilhetes e brigava com os que queriam viajar de graça. O bate-boca esquentou com um deles parecendo que chegariam às vias-de-fato. Mas se entenderam na conversa.
De início, a periferia da capital, feia, empoeirada, inacabada. Depois das ruínas do aqueduto, a zona rural, cultivada com grãos e frutas, ou com capim e alfafa para alimentar os rebanhos de ovelhas, cabras, eventualmente gado. O norte da Tunísia se mostrava mais úmido, verde, fértil.
Passageiros embarcavam e desembarcavam no meio do nada ou em cidadezinhas acinzentadas. Pequenos vilarejos brotavam no meio das plantações sem fim. Serrotes se erguiam e desapareciam. O extenso lago salgado, entre Mateur e Tinja, cristalizava sal nas bordas.
Após cruzar a extensa zona militar e fortemente protegida, o trem parou na estação final de Bizerta (Bizerte), construção velha, caindo aos pedaços, em obras intermináveis. Em frente à estação, lotações, as louages, trazendo e levando passageiros.
Um recém-formado em marketing, desempregado da mesma maneira que quarenta por cento dos jovens tunisianos, que eu conhecera na zona dos engates dos vagões durante o percurso, me acompanhou pelas primeiras ruas da cidade. Ele falava e entendia pouco o inglês. Eu falava e entendia pouquíssimo o francês. Era ateu e com visão progressista sobre a Tunísia e o resto do mundo. Seguia a caminho de entrevistas de emprego.
Andei sem rumo pelas ruas, sabendo que no outro extremo havia o mar. De repente, dei de frente a charmoso canal do mar, ladeado por casario árabe de um lado, pela fortaleza murada de outro, dentro da qual se emaranhava a medina da cidade. Nas beiras do canal, dezenas de barcos de pesca e de passeio. Nas calçadas, bares e restaurantes informais serviam peixes, mariscos, ostras, camarões. O sol brilhante do meio da tarde valorizava as cores, contornos, relevos, contrastes.
Dei volta rápida pelos becos e sinuosidades da medina, pequena e residencial. Contornei a sólida murada e avistei as águas azuladas e convidativas. Me assustei com a construção alta, imensa, cinzenta, horrenda, agressiva e inacabada à direita. Pisei a areia fina e clara da praia. O azul profundo do Mediterrâneo não poderia ser mais emblemático do que aquele à minha frente. Azul de encantar os olhos do mais indiferente dos mortais. Nem o vento frio, nem o lixo acumulado em trechos da areia, nem o bando de cachorros antissociais que topei pelo caminho me tirariam dali.
Mas eu não tinha todo o tempo até a partida do último trem para Túnis. Retornei pelo calçadão da beira do canal, agora contra a luz do sol, que fornecia efeito ainda mais espetacular ao conjunto casas, água, barcos, muralha. O casario caiado de branco com as janelas e portas azuis tinha o minarete da mesquita de base quadrada ao fundo.
Atingi o centro comercial de Bizerta (Bizerte) com o estômago roncando de fome. Encontrei restaurante que servia pratos-feitos tunisianos. O chawarma, salada, batatas, arroz com açafrão, pasta condimentada de berinjela e, obviamente, a onipresente, a saborosíssima, a incendiária harissa, veio acompanhado da cesta de pães, muitos pães. Me empanturrei de tanto comer, em mesa solitária na calçada, para deleite dos transeuntes que me olhavam curiosamente. Completei o almoço tardio, ou o jantar antecipado, com doces de tâmaras, os chifres-de-gazela, a fim de adoçar o sangue e afastar os últimos vestígios apimentados da harissa.
Embarquei em trem elétrico de apenas dois vagões, mais moderno e em melhor estado do que o da ida. O sol se pôs durante o percurso.
Embora não afeitos a regras de trânsito, para veículos ou para pedestres, os tunisianos não agiam agressivamente. Trocavam gentilezas naturalmente. Usavam da boa e velha convivência humana contra as regras quadradas e impostas pelo ocidente invasor e colonizador. E geralmente funcionava. Mas não estavam nem aí para os avisos sobre o uso preferencial de assentos, em trens, ônibus, bondes. Todos se sentavam impunemente, independente se houvesse pessoas mais necessitadas. Se alguém preferencial se aproximava, e não havia assentos disponíveis, ninguém se mexia. E o passageiro preferencial permanecia de pé.
O TGM, trem de subúrbio, de vagões velhos e descuidados, partiu bem cheio da estação Túnis Marina. Após parar em diversas estações intermediárias, La Goulette, Cartagho, a graciosa Sid Bou Said, desembarquei no final da linha.
La Marsa era cidade de veraneio, repleta de casas suntuosas erguidas sobre a colina que desce para a praia no Mediterrâneo. O azul profundo das águas agitadas do mar convidava a mergulhos refrescantes em dias mais quentes. O comércio sofisticado, ou metido a isso, inferia os frequentadores habituais, as elites árabes e europeias. Construções faraônicas e irregulares afrontavam o bom gosto e, sobretudo, o ecossistema marinho. As ruas e becos do bairro dos ricos, pela consciência pesada, mantinham exagerado esquema de segurança armada.
Peguei o trem de novo e desembarquei em Sid Bou Said, vilazinha transbordando em beleza, bucolismo, bom gosto, serenidade. Convidava a andar preguiçosamente pelas ladeiras, becos, escadarias em curva, sobrados avarandados do casario, invariavelmente caiado de branco com portas e janelas azuis. As portas tunisianas eram um caso à parte, pesadas, sólidas, desenhadas com pontas de metal fundido, protegidas acima por arcos de pedra. Do alto da colina, o Mediterrâneo de um lado, recebendo o vento frio da Europa, os lagos e mares internos do oposto, com marinas, montanhas ao fundo, águas mais calmas. Moradia de artistas e descolados, a vila remetia à paulista Embu das Artes. Me instalei em restaurante com vista privilegiada e sem o vento. Valeu pelo mar escandalosamente azul, o chawarma bem acompanhado de legumes, arroz, batatas, legumes, mais a harissa e a pasta de berinjela, picantes até dizer chega.
Desci a colina para tomar o trem de volta a Túnis. O sol brilhava mais do que os dias anteriores.
Os hóspedes do hotel iam trocando de rostos. Falantes de árabe cujas mulheres se cobriam de véus e mantos, falantes de línguas monossilábicas e multitônicas do sudeste asiático, falantes de francês. Uma branca jovem, ao escolher no bufê matinal, colocou no prato isso e aquilo, além de colherada de pasta avermelhada, supondo tipo de geleia tunisiana. Ao mandar à língua uma boa porção de harissa, junto a um naco de pão, veio o pulo na cadeira. Desesperada e olhando para todos os lados, não sabia se cuspia tudo no prato, se engolia, se bebia água, café, chá, suco, se chamava os bombeiros, se gritava ou o quê. Por fim, engolindo os demais itens, líquidos e sólidos, o incêndio interno amenizou, o vermelho do rosto clareou, os olhos ficaram menos esbugalhados, o corpo relaxou na cadeira.
E lá fui à estação ferroviária comprar passagem de trem para Sousse, visando mais o trajeto de trem em si do que propriamente revisitar a cidade dos resorts.
O trem velho e confortável partiu lotado. Parou somente nas estações de Hamana Lif e Bir Bou Regba antes de eu desembarcar em Sousse. Os passageiros ainda seguiriam para diversas estações intermediárias, além de Sfax e da parada final em Tozeur, prevista para o anoitecer.
Pouca gente na popular praia do centro, Boujaafar. Perambulei sem rumo pelas ruelas da medina de Sousse.
Almocei peixe grelhado com legumes e batatas, acompanhado de feijão branco nadando em harissa. O restaurante era simples, desajeitado, despreocupado com a aparência. Uma senhora por duas vezes passou ao meu lado, carregando o balde encardido cheio de batatas descascadas e cortadas. Gatos me rondavam a fim das sobras do peixe. A frequência de moradores da cidade ou a trabalho nas redondezas, familiarizados com a cozinha, me tranquilizaram quanta a possíveis consequências estomacais.
Relaxei nos bancos sob as sombras das árvores da praça, observando o movimento do centro nervoso. Um tunisiano se sentou ao meu lado e puxou assunto. Não decolou e ambos desistiram. Fui abordado por malandro que insistia em me passar moedas sei lá de que países. Falei umas bobagens em português e ele se mandou.
O moderno trem elétrico de apenas dois vagões lotou imediatamente. Consegui assento privilegiado na primeira fileira, bem em frente à cabine de comando. Fumante inveterado, o maquinista atingia a velocidade máxima permitida nas retas de cento e trinta quilômetros por hora. Balançava para cima, para baixo e para os lados, feito um boneco, enquanto sentado no banco de molas exageradamente flexíveis da cabine.
No topo dos postes de metal e das torres de transmissão de eletricidade, as cegonhas construíam ninhos grandes e confortáveis. Ninhos completos. Permaneciam com o pescoço esticado para fora, chocando, se prevenindo de possíveis predadores. Cenas que se repetiam por toda a Tunísia, de norte a sul, tal qual marcas registradas na paisagem.
Desembarquei em Túnis ao anoitecer. Papei salame e queijo com harissa no pão chapatti. Os cafés da avenida Habib Bourguiba lotavam de tunisianos tomando café, chá, água, jogando conversa fora, olhando o vaivém dos pedestres a caminho de casa. Consumo de bebidas alcoólicas somente em bares mais discretos, e do lado de dentro, com a porta meio aberta. Nada de exibição ou ostentação ao ar livre.
Lixo e entulhos acumulados nos terrenos baldios, ruas e becos, áreas desocupadas, ferrovias, estações de trem. Sacos plásticos presos aos galhos de árvores, soltos nos interiores e periferias urbanas. Córregos canalizados, imundos, entupidos de lixo fedorento. Alguns pedintes idosos em trens de subúrbio, calçadas, praças, próximos a mesquitas. Apenas parte do que vi do lado menos admirado da Tunísia.
E parece que o calor aportou de vez no norte da África. Ainda não era o típico de verão, quando as temperaturas beirariam os 50 graus, mas as temperaturas subiam significativamente. Não por acaso, chapéus passavam a ser vendidos em lojas e ambulantes, imediatamente usados pelas primeiras tunisianas, sobre os véus e mantos. Também os óculos de sol se tornavam itens essenciais.
Dei giro pela medina, a residencial e menos desfigurada, situada ao lado da medina comercial. Becos, ruelas em arco, casario caiado de branco, caminhos estreitos, portas espetacularmente antigas, minúsculas oficinas, marcenarias, alfaiatarias, barbearias, trabalhos em tecidos, metais, madeira, pedras, moradias simples, lado a lado, frente a frente. Tudo muito próximo. Impossível não praticar a convivência pacífica.
Um sujeito idoso e muito comunicativo insistiu para me desvendar tesouros escondidos pelos labirintos da medina. Eu estava solto mesmo e o acompanhei. Me mostrou coisas pelas quais eu já tinha passado e outras nem tanto ou das quais não me lembrava. E ele falava, contava, explicava, narrava, enaltecia, ressaltava, valorizava a experiência única adquirida em décadas circulando por ali. Andamos muito. Ele falou muito. Eu ouvi muito. Ao final, me pediu gorjeta pelo trabalho. A cobrança e o valor tinham sido expostos antes? Então nada feito. Nem um centavo, mesmo após os implorados pedidos, mencionando netos sem condições de pagar o uniforme e o material escolar.
O feriado do dia internacional do trabalho concentrava militantes de roupas e bandeiras vermelhas ao longo da avenida Habib Bourguiba. Torcedores argelinos circulavam em grupos, de uniforme do time, agitando bandeirolas e flâmulas, gritando versos de torcida organizada. O policiamento, para lá de numeroso e ostensivo desde o atentado do mês anterior, se ouriçou com as novidades e retraiu os músculos nas armas pesadas a tiracolo. Palavras de ordem eram entoadas pelos grupos organizados para as manifestações. As rondas policiais armadas até os dentes cercavam os pontos estratégicos. Preferi não me arriscar em país estrangeiro com passado recente turbulento. A tensão crescia e se tornava incompatível com um viajante curioso com câmera fotográfica à mão.
Acordei bem antes do despertador e esperei o início do café da manhã. Subi no táxi reservado para me levar ao aeroporto não interligado por transporte coletivo. O taxista ignorou o valor marcado no taxímetro, garantindo que combinara na recepção do hotel um valor três vezes maior. Golpe descarado e escancarado. Eu não queria discutir, pois tinha dinares de sobra que, de qualquer maneira, morreriam inúteis na minha mão. E nem assim acabou o dinheiro tunisiano, não conversível em outros países.
Peregrinos muçulmanos vestidos a caráter, com túnicas brancas ou de cores bem claras, eles e elas, embarcavam para a Arábia Saudita, provavelmente rumo a Meca, uma das cinco metas de todos os muçulmanos sadios e com condições financeiras.
Da mesma forma de Roma, ali no aeroporto de Túnis também havia a estapafúrdia área reservada aos fumantes. Pequena, apertada, envidraçada, expondo os desejosos de câncer, todos de pé, inalando e baforando fumaça, tornando o ar nebuloso, contaminado, patético feito aquário esfumaçado. E ainda assim se sujeitavam ao vício, e pagando por ele.
Voo de Túnis a Casablanca tranquilo na empresa aérea do Marrocos, com refeição comível à base de cuscuz marroquino. A paisagem se tornou árida próxima à fronteira com a Argélia. Exibia montanhas com cristas e as encostas altas nevadas, sobretudo nas imediações da cidade argelina de Constantine. Ainda mais desértica na porção ocidental da Argélia. O cenário voltou ao semiárido depois de entrar em território marroquino, com algum verde pálido, plantações, vales mais ou menos férteis. Cristas e encostas nevadas das altas montanhas da cordilheira do Atlas. O solo secou nos arredores de Casablanca, expondo terreno ocre, monocromático.
continua...

2 comentários:

  1. Os problemas socias e ambientais são parecidos com os do Brasil, até cachorros antissocias...mas o que me encanta mesmo são os pequenos vilarejos com suas arquiteturas, seu povo, sua gastronomia e tudo o que os torna donos de uma curiosa e excitante cultura. Continuo na carona.

    ResponderExcluir
  2. Ivete, mais uma vez obrigadão pelos comentários!
    Também me encanta os detalhes e o bucolismo dos vilarejos pequenos, o povo, a comida, o dia a dia. Não à toa, permaneço mais tempo nesses destinos do que naqueles que supostamente abrigam as "atrações turísticas oficiais".
    O importante é nos guiarmos pelos instintos, pelas emoções, pelo espontâneo.
    Abraços e comente sempre!

    ResponderExcluir