sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Escandinávia (parte 3/4)

...continuação
Embarquei em trem rumo a Kemi, onde após pequena espera, peguei ônibus para Tornio ainda na Finlândia, de onde embarquei em novo trem para cidade sueca de Haparanda, com desembarque no meio do dia. Ali a espera foi longa. Aproveitei para dar uma volta.
Na beira do mar báltico, a pequena Haparanda envolvia pela singeleza, ordem e limpeza. Ruas arborizadas guardavam casas em cores vivas e flores nas janelas. Ninguém nas ruas. A pouca comida que eu trouxera não deu conta da fome. Calculei mal as coroas suecas restantes, não havia bancos abertos, nem chances de obter mais dinheiro. A única alternativa foi comprar uma barra de chocolate para enganar o estômago.  
Finalmente, depois de horas, novo embarque em trem com destino a Boden. O relevo, sempre plano, exibia extensos bosques, pastos de ovelhas ou gado, algumas casas vermelhas ou amarelas. Pouco antes da chegada, ao anoitecer, como se estivesse pegando fogo, o céu se tingiu de cor púrpura, luminoso, incandescente. Ninguém tirou os olhos daquela maravilha.
A espera em Boden pelo novo trem foi ainda mais longa e desconfortável. Os funcionários fecharam a estação ferroviária à noite e os passageiros de conexão tiveram que ficar ao relento. A noite caiu e, com ela, o frio cortante. A passagem subterrânea sob a ferrovia serviu como o único refúgio contra o frio e o vento. Mas o corredor era vazio e com paredes cimentadas, amenizando apenas parcialmente. Vesti tudo o que tinha direito, me agitando para não congelar.
Como posto militar no norte da Suécia, a cidade de Boden não oferecia nada de atraente para ver ou fazer, sobretudo em uma noite gelada. Bem que tentei circular pelas principais ruas. Tudo escuro, fechado, vazio. Apenas o som do vento e de meus passos se ouvia naquele fim de mundo da Lapônia sueca.
Retornei à passagem subterrânea. Me aproximei de dois ingleses comunicativos, evitando quatro italianos do norte que esbanjavam arrogância, presunção e racismo. Não era sem motivo que os italianos do sul os rotulavam de austríacos frustrados. Um dos ingleses, o mais falante, salvou o ambiente, ajudando passar o tempo e a espantar o frio.
E, depois de sofrer a tortura de mais uma espera sem fim, do frio insuportável, sem dormir, a estação reabriu. O trem encostou e partiu no absurdo horário das 2:15h da madrugada.

Chegada a Kiruna ao amanhecer em meio a morros e colinas cobertas de vegetação rala. Do lado oposto, encontrava-se uma mina de ferro. Meia hora depois embarque em novo trem, a sexta e última conexão do trajeto entre Rovaniemi, na Finlândia e Narvik, na Noruega. Ninguém aguentava mais.
O relevo mantinha-se com leves ondulações, colinas cobertas por vegetação mais rala. Aumentavam as latitudes, subiam as altitudes, o solo tornava-se mais árido e rochoso. Lagos surgiam nas margens da ferrovia. A névoa matinal que os cobria fornecia efeito visual interessante. Nenhum sinal de vida, casas ou plantações. E o relevo tornou-se mais acidentado após a estação de Abisko. As minúsculas estações ferroviárias atendiam quase que exclusivamente montanhistas e escaladores.
Nas imediações da fronteira norueguesa a paisagem ficou ainda mais dramática. Vales estreitos e profundos cortavam montanhas escarpadas e cobertas com finas camadas de neve. E o lindo fiorde de águas transparentes nos deu as boas vindas ao norte da Noruega.
No meio da manhã, depois de vinte e cinco horas de trens e ônibus pelos nortes da Finlândia, Suécia e Noruega, de longas esperas, do frio intenso, da noite sem dormir, cansado e faminto, eu desembarcava em Narvik na Noruega. Todos suspiraram aliviados. A maioria, como eu, hospedou-se no albergue da juventude.  Os dois ingleses seguiram adiante.
Situada 300 quilômetros ao norte do círculo polar ártico, Narvik agradava, sobretudo em razão do belíssimo fiorde ao lado e das montanhas escarpadas, parcialmente cobertas de neve e gelo. Por ser o único a nunca congelar no inverno, o porto da cidade tornou-se o principal do norte da Escandinávia. A maioria das residências era de madeira e pintada em cores vivas. Cenário típico escandinavo se exibia nas imediações das águas azuladas do fiorde, oriundas do derretimento da neve das montanhas. 
Os preços da alimentação do norte da Noruega conseguiam a inglória proeza de superar os dos vizinhos escandinavos. Impossível de comer nos restaurantes. Como saída, havia os supermercados com pães, sucos, frios, queijos, chocolates.
À tarde o tempo fechou. Baixou nuvem escura e carregada cobrindo as montanhas. A temperatura despencou, ventou forte, ameaçou chuva. Restou o acolhedor salão social do albergue que concentrava a maioria dos hóspedes.
À noite, depois de comer o que comprara no supermercado, com frio e chuva do lado de fora, me juntei ao pessoal que se sentava ao redor de grande mesa do albergue. Diversas partes do mundo se reuniam ali para conversar, ouvir, aprender, trocar ideias, passar o tempo. Todos se revezavam em saciar a curiosidade dos demais a respeito dos respectivos países. Queriam saber da geografia física e humana, situação social e política, cultura, esportes, detalhes desse e daquele tipo. Momentos para lá de agradáveis, quebrados somente pela chegada de um estadunidense. Brotou mal estar em todos assim que souberam a origem do infeliz. E o sujeito começou a perguntar qual a marca e o ano do carro de cada um. Ninguém deu bola à tamanha estupidez. Não satisfeito, pegou as vítimas do lado e, sem que se mostrassem interessadas, passou a descrever avidamente o modelo, a cor, o ano, as características mecânicas, do carro que alegava possuir, entre outras bobagens consumistas.
Demorou muito para que a prepotência do estadunidense lhe permitisse perceber que não era bem-vindo por ali. Saiu de mansinho e com olhar desentendido. A paz voltou a reinar naquela mesa cosmopolita. Por boas e longas horas.
Eu e mais quatro alemães fomos bem cedo ao porto da cidade. Planejávamos seguir ao arquipélago das ilhas Lofoten. Fazia frio naquela manhã nublada e chuvosa. O preço, que só soubemos depois de embarcar, era norueguês demais. Caríssimo. Não sabendo quando e se eu voltaria àquela parte do mundo, decidi encarar a empreitada. Os alemães se recusaram a pagar e desembarcaram imediatamente. Não sem antes, a alemã mais alta, e que parecia a líder do grupo, se despedir de mim com forte abraço e um molhado beijo na boca.

E o barco partiu com mais dez passageiros desconhecidos. O trajeto foi tranquilo e confortável, pouco balançando a embarcação moderna, aquecida, acarpetada. Depois de rápida escala numa ilhota, o barco continuou o percurso por entre ilhas montanhosas até parar em Svolver.
O escritório de turismo estava fechado. Apelei para a central de polícia, onde me informaram a suposta localização do albergue da juventude. Mas não consegui encontrá-lo. Após conversar, ou o que quer que os dois australianos rudes com quem cruzei no percurso chamassem aquelas frases cuspidas, decidi seguir até Stamsund, outra ilha do arquipélago.
Como o barco já partira, embarquei em ônibus no rumo sul. O trajeto reservou minúsculos vilarejos na beira do mar, com casas de madeira em cores vivas. Atrás, onipresentes montanhas escarpadas, rochosas, de picos pontiagudos. Novas, estreitas e sem acostamento, as estradas proporcionavam emoção e perigo nas curvas. O ônibus cruzou várias pontes antes de atingir o destino final.
Depois de passar por Leknes, desembarquei à tarde em Stamsund, pequeno vilarejo de pescadores varrido pelo vento e chuva fina. O pequeno porto, o comércio modesto, os inúmeros barcos atracados pareciam abandonados naquela tarde horrível. Caminhei até o albergue da juventude.
Galpão informal de madeira e isolado na beira do mar, a espelunca mais parecia brincadeira de mau gosto. O ambiente interno, por outro lado, com ares de república estudantil, seduzia pela liberdade e descontração, raras portas, paredes ou divisórias. Os hóspedes nem reparavam no que os outros faziam ou deixavam de fazer, mesmo estando bem ao lado. O albergue cobrava caro por cinco minutos de banho em instalações precárias, do lado de fora. Quem se dispusesse a pagar, teria que enfrentar o vento, a chuva, o frio, na ida e na volta do tal banho. Não notei ninguém com tamanha coragem. E não fui exceção.
Reencontrei os colegas ingleses da via sacra de Rovaniemi a Narvik. Encaramos aquele tempo sombrio, a estrada sem acostamento, e fomos comprar comida no supermercado do centrinho. Não vimos nenhum restaurante na vila de Stamsund.
O albergue possuía cozinha coletiva no andar térreo e o cheiro de comida se propagava pelo recinto, inclusive ao mezanino acima, onde se espalhavam colchões e sacos de dormir. Tudo escancarado e misturado. O clima entre os hóspedes contagiava pela atmosfera de paz e amor. Beiraria a perfeição se ali se encontrasse uma, pelo menos uma mulher com o mínimo de atributos elogiáveis. Mas todas eram assustadoras sob quaisquer ângulos. E muitas estavam acompanhadas dos respectivos. Nem sei o que aconteceria se, por algum desastre natural, todos ficassem retidos ali por semanas e mais semanas, isolados do mundo.
Depois de muita comida, papo gostoso, o sono veio devagar, pegando um a um. O albergue, finalmente, mergulhou no silêncio da noite. Nem reparei em roncos ou outros ruídos.
Amanheceu com o clima peculiar da região. Nublado, frio, com chuva fina, vento forte. As raras pessoas que se aventuravam pelas ruas e estradas curvavam-se para se protegeram. Os hóspedes do albergue permaneciam recolhidos e cobertos de roupas. Iam às ruas apenas na busca de mais comida. Rodinhas se formavam na cozinha e invariavelmente próximas aos fogões. Eu e os ingleses decidimos partir aquela noite.
A retirada incluía esdrúxulo roteiro até o continente. Primeiro um barco rumo norte, a Svolver, depois outro barco rumo sul, a Bodo, mas com a aparentemente inexplicável escala em Stamsund, justamente onde estávamos. É que queríamos, a todo custo, evitar as tarifas ainda mais caras das sextas-feiras, o dia seguinte. Abrimos mapas, consultamos horários de barcos. O esquema das conexões não poderia furar.
E lá fomos nós, no começo da noite, com todas as bagagens, até o porto de Stamsund. Éramos em mais de dez pessoas.
continua...

7 comentários:

  1. Quer dizer que você já esteve aqui na minha cidade? Bem, eu nasci no Rio mas adotei Oslo então ela não deixa de ser minha também. Engraçado você falar do ø ou Ø. Tem também o å Å e o æ Æ.
    Tenho que discordar de você quando chama Oslo de barulhenta. Acho que aqui é a capital mais silenciosa que eu já conheci, é raro ouvir buzinas, e os noruegueses têm o costume de falar baixo e serem discretos. É verdade que aqui é caro, porém os salários são dos mais altos do mundo. Eu sei que para um turista isso não importa muito. Rs
    Também é verdade que a comida não é lá essas coisas, na maioria dos lugares. Aqui o ideal é pesquisar antes de entrar em um restaurante, ouvir recomendações para não gastar muito e ficar pouco satisfeito.
    O vigelandsparken é uma graça mesmo. Em Oslo tem muito verde, apesar de ser uma capital. Acho que uns 50% da área de Oslo ainda é floresta. Você deve ter ficado perto da estação de trem, que é a pior área daqui. É onde se concentram os drogados e traficantes, por isso essa má impressão que você teve das pessoas naquela área. Os subúrbios são bem cuidados, há áreas nobres com arquitetura muito graciosa. Não é uma cidade estonteante, porque a Noruega um dos países mais pobres da Europa, e isso reflete na simplicidade das construções antigas.

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  2. Oi Marcela, tudo bem?
    Antes de mais nada, é preciso registrar que estive em Oslo em 1988.
    Realmente não gostei da cidade naquela oportunidade.
    As áreas mais interessantes do centro passavam por obras. A garoa não parava. A lama e a poluição sonora das máquinas incomodavam demais. Tinha que desviar pela rua movimentada devido às obras nas calçadas.
    O atendimento na maioria dos lugares foi seco, agressivo, preconceituoso, como em Helsinque.
    Por isso considerei aquele parque um oásis, em todos os sentidos, mesmo sob o céu nublado e a garoa intermitente.
    As outras regiões da Noruega, no entanto, me agradaram. Narvik, Svolver, Stamsund, Trondheim, etc, têm charme e beleza.
    De qualquer maneira, relatos de viagem refletirão sempre o olhar do viajante naquela data especificamente.
    Obrigado pelos comentários. Escreva sempre.
    Abraços!

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    1. Este comentário foi removido pelo autor.

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    2. Marcela, essa questão do silêncio é catastrófica. Penso como você. Apesar de adorar viajar pelos interiores do Brasil, me bato constantemente com o barulho vindo de variadas procedências: som de carro, cultos fundamentalistas nas empresas evangélicas, televisores nos estabelecimentos comerciais, inclusive nos cafés da manhã, som das casas, etc. Mas o brasileiro é assim mesmo, escancara a alegria de maneira exagerada rssss.
      E eu tento procurar lugares mais calmos. Até que os encontro, viu?

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  3. E você, Marcela, mora há muito tempo na cidade? Como foi parar aí?
    Abraços!

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  4. Viajante Sustentável, que descrição lindíssima, gostaria de estar lá neste momento:-"Pouco antes da chegada, ao anoitecer, como se estivesse pegando fogo, o céu se tingiu de cor púrpura, luminoso, incandescente."
    Apesar do povo ser pouco hospitaleiros, preços elevados, gastronomia precária e tantos outros problemas...a Noruega me encanta. Acredito que hoje tenha evoluído. Abraços e sigo.

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  5. Obrigado pelo comentário, Ivete!
    Os interiores da Noruega valem e muito a pena. Mas a frieza do povo e os preços estratosféricos doem na alma rssss.
    Mas, só soube depois que arrisquei e fui. É assim mesmo.
    E vamos seguindo...abraços!

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