quarta-feira, 20 de julho de 2011

do Pará a Alagoas (parte 4/6)

...continuação
Subi cedo na garupa da moto para mais um dia de exploração na Serra da Capivara. A bunda e os quadris ainda sentiam a excesso de moto do dia anterior.
Entramos pela guarita principal, cruzando o povoado de Sítio do Mocó. Visita aos sítios arqueológicos e os altos dos morros nas imediações da famosa Pedra Furada, cartão postal do parque. Revi, depois de dez anos, as tocas com centenas e espetaculares pinturas rupestres, muito bem estruturadas para visitação. Em outro trecho, gravuras em alto relevo, em estilo abstrato. Como crônicas de costumes da antiguidade, a forma de expressão anterior à escrita dos povos que viveram ali há milhares de anos se tornava registro histórico da mais alta qualidade e importância cientifica.
As abelhas e marimbondos, em enxames ou em buracos nos paredões rochosos, zuniam assustadoramente perto das pinturas, obrigando a evitar ruídos ou movimentos abruptos. Avistados também saguis, veados, aves, pássaros variados, perambulando pelas trilhas, sem falar nos onipresentes lagartos de todos os tamanhos e colorações.
Fora dos limites do parque nacional, conhecemos os processos de fabricação de cerâmicas artesanais com motivos da Serra da Capivara. Eram, entre outros, copos, xícaras, pratos, potes, vasos, enfeites, travessas, vasilhas de formatos, tamanhos, cores e estampas variadas. Tudo de excelente qualidade, credenciando-os com fornecedores de importantes lojas de decoração do Brasil e do exterior.
Retorno a São Raimundo Nonato quando minha coluna, quadris e bunda davam sinais de esgotamento. A mente, por outro lado, mantinha-se empolgada e satisfeita com as explorações aos sítios arqueológicos que comprovam a existência, na Serra da Capivara, dos povos mais antigos das Américas.

Nem bem anoiteceu e lá fui eu, a pé, ao bairro do Gavião, a fim de saborear a tão falada galinha caipira. A caminhada não foi das maiores, porém o calor abafado provocou suor pelo corpo, e nos últimos quarteirões não tinha iluminação pública. Minutos depois eu mergulhava de cabeça em maravilhosa galinha ao molho pardo, com arroz, pirão da galinha e salada. Lambi os beiços. Realmente, divinamente saborosa. Valeria ter caminhado o triplo da distância, por ruas piores e mais escuras, para tamanho banquete. Imperdível. Retornei lentamente ao hotel, em estado de graça, ainda sentindo na boca o sabor estupendo da galinha ao molho pardo.
São Raimundo Nonato crescera, se movimentara, mas se mantinha a mesma de dez anos antes. Feia, suja, sem qualquer urbanização, com esgoto fétido correndo a céu aberto na guia da calçada. O povo, porém, conquistava pelo acolhimento, simpatia, descontração. Além de base para explorar a Serra da Capivara, valia a pena passar uns dias a mais na cidade. Perambulei pelas ruas, pelo menos nos horários em que o sol massacrava menos. E dá-lhe a legítima e insuperável cajuína do Piauí para matar a sede.
Bem cedo o ônibus partiu por estrada boa e sem buracos, cortando a caatinga do sudeste do Piauí. Logo de cara subiu acentuadamente a Serra da Capivara e cruzou a borda leste do parque nacional, passando em frente a uma das guaritas. Aproveitei para contemplar os últimos instantes daquela maravilha. Paradas para embarque e desembarque em Coronel José Dias, São João do Piauí, Simplício Mendes e Colônia do Piauí.
Desci no coração do centro histórico de Oeiras, onde me hospedei em pousada instalada em casarão colonial com quartos dispostos ao redor de pátio central. A atmosfera era de volta no tempo. A cidade guardava casario antigo bem preservado, urbanismo charmoso, praças e largos, tranquilidade.
À noite belisquei e bebi umas e outras durante horas no Café bem no miolo do centro histórico. Mesas ao ar livre, pouco movimento, casais de namorados na ampla praça em frente, tudo depois da missa da Matriz. Circulei sem pretensões pelas ruas que chegavam e saíam da praça. Ambiente silencioso e calmo, perfeito.
O centro histórico de Oeiras, amplo e arejado, era um museu a céu aberto, com a suntuosidade de antiga capital do Piauí. Diversos prédios públicos, antigos e atuais, se erguiam ao redor ou nas imediações da espaçosa praça da Vitória. Somavam-se a eles o Cine Teatro Oeiras, o Café Oeiras, o Museu de Arte Sacra, o casario abrigando famílias tradicionais. Saindo dessa concentração ainda existiam construções antigas, posteriores e anteriores ao século XIX, em meados do qual a cidade perdeu o posto de capital para Teresina. Era delicioso me perder pelas ruelas, me sentar em bancos das praças à noite, observar o lento movimento local. A parte mais nova de Oeiras nada oferecia de atraente, concentrando a economia ativa da cidade, a maioria das escolas, hospitais, clubes, oficinas e, claro, a estação rodoviária. Discretos e retraídos, os oeirenses costumavam aguardar minha iniciativa para cumprimentar ou acenar.

Subi o morro do Cruzeiro, no topo do qual as obras de urbanização construíam área de lazer e descanso. Tentei pegar trilhas que me levariam às colinas circundantes, mas bandos de onipresentes mutucas não me permitiam andar um metro adentro da caatinga.
O ambiente do salão do café da manhã da pousada era triste, sem conversas, com a insuportável televisão ligada em programas horrorosos dos oligopólios da mídia, atraindo os olhares bovinos dos poucos hóspedes. Eu procurava escolher mesa de costas para aquela praga, de modo que todos ficavam de frente para mim. Até os garçons, sentados e bestificados, assistiam as inutilidades de sempre da telinha.
Caminhei a fim de cruzar a Oeiras nova e subir no morro acima do qual se encontrava estátua de Nossa Senhora da Vitória. O mormaço provocava efeito térmico de fervura. O suor escorria pelo corpo todo, a camiseta encharcava e tudo ficava pegajoso naquele ar viscoso. As escadarias de andares altos levavam ao alto do morro, de onde se tinha ampla visão da cidade. Trilhas circundavam o topo alongado em meio a campos e arbustos do semiárido.
Observei a saída de ônibus clandestino rumo a São Paulo. O veículo estava lotado até o gargalo. A carroceria, pneus, faróis, lanternas, o aspecto e o comportamento do motorista não poderiam ser piores. A placa era de Orlândia, São Paulo. O painel frontal indicava a fantasiosa linha de Natal a Osasco. Do outro lado da rodovia, outro ônibus da mesma empresa, seguindo no sentido contrário, trocava o pneu furado na borracharia do posto. Também entupido de pobres coitados tratados como gado.
O céu estrelou. A lua quase cheia brilhou forte. Cruzei diagonalmente a praça da Vitória e me sentei em mesa ao ar livre do Café. Bebi, comi, bati longos papos com o garçom. Apreciei o movimento ao redor, contemplei o cenário belíssimo e tranquilo do centro histórico de Oeiras.
O ônibus da empresa Princesa do Agreste tentou compensar o atraso e demais desserviços com o desnecessário vídeo interno. E colocaram DVD de músicas do fundamentalismo religioso, de alguma facção evangélica do comércio da fé. Depois que embarquei, a tortura durou mais de meia hora. Uns passageiros assistiam bestificados, outros olhavam a paisagem pela janela. E a próxima atração foi a apresentação musical de galã adolescente, o tal de Luan Santana. A paisagem da caatinga esverdeada oferecia serrotes e morros, especialmente nas imediações de Picos, cidade encravada lá embaixo logo após a descida de imponente serra.

A poluição visual e sonora dos vídeos prosseguia com festival de piadas sem graça, gravado de um canal comercial qualquer. O pôr-do-sol ocorreu na divisa entre Piauí e Pernambuco, nascendo enorme e brilhante lua cheia. Anoiteceu em Pernambuco com a caatinga nos acompanhando na beira da rodovia. Ao meu lado, típico escravo do comércio da fé, de roupa social, bíblia na mão, expressão de otário.
Em Pernambuco, o ônibus parou em Araripina, Trindade, Ouricuri, Parnamirim. Desembarquei no meio da noite em Salgueiro. Avistei hotel nas proximidades da rodoviária, bem instalado em construção moderna e funcional.
Comi bem no café da manhã enquanto assistia ovelhas evangélicas, com a estrela de Davi e a palavra Judah impressas nas camisetas, se dirigindo ao auditório de convenções do hotel. Retornei ao quarto e me entreguei à preguiça. Não tinha e não queria ter planos para aquele dia. Do hotel se viam serrotes pedregosos e a paisagem que não escondia a aridez do sertão central de Pernambuco.
Nem bem anoiteceu e saí à procura de jantar decente. Encontrei o que pareceu a principal churrascaria de Salgueiro, frequentada por faixa etária acima dos trinta anos, música ao vivo somente para mais tarde. Escolhi mesa bem posicionada em ambiente que prometia caso eu desejasse. Os moradores saíam à noite, invadiam as calçadas, ruas, praças, bares, restaurantes, lanchonetes, sorveterias. Bastava o sol se pôr e a temperatura cair nem que fosse o mínimo, para a cidade se alegrar e ganhar vida nova.
O ônibus partiu quase vazio no meio da manhã. Como o ar condicionado do ônibus novíssimo não funcionava e as janelas não podiam abrir, a sauna no interior do veículo se fez sem piedade. O calor era mais ameno fora que dentro do ônibus. E estávamos no miolo do semiárido pernambucano, cercado da mais pura caatinga. As empresas fabricantes de ônibus, todas transnacionais, insistem em construir ônibus com o quase sempre supérfluo ar condicionado e com as janelas de vidro fixo, impossíveis de serem abertas e receberem a agradável ventilação natural.
Desembarquei em Serra Talhada, terra natal de Lampião e capital brasileira do xaxado, ao pé da enorme e imponente serra com paredões rochosos. Subi em veraneio do tempo do onça rumo à subida da serra até Triunfo, ao som de Silvano Sales, entre letras com muito romantismo, tragédias e mágoas.
Fiquei em pousada vazia nos altos de Triunfo. Almocei no restaurante já conhecido de quatro anos antes. Do outro lado da rua, sob as árvores, trio de forró autêntico, proveniente da Paraíba, mandava ver clássicos, velhos e novos, todos de qualidade ausente nos lixos comerciais que se escondem atrás do rótulo de forró eletrônico. Casais dançavam entre as mesas. Outros sentados acompanhavam a boa música, cantarolando ou sorrindo.
Triunfo, com o lago e o centro antigo sobre a colina, continuava charmosa. O silêncio da tarde indicava que aquela noite encerraria cedo. Me antecipei, tomei duas doses da cachaça local, comi carne de sol e macaxeira. Bati papos com o dono do bar, colecionador de garrafas de aguardente, e me senti em casa. Ainda apreciei e registrei a bela cena noturna composta pelo lago rodeado pelo calçadão, o centro antigo com destaque para a igreja Matriz no alto.
O silêncio e a temperatura amena durante a madrugada garantiram as condições para relaxar e descansar como se deve.
Circulei sem compromisso pelo centro da cidade, de ruas estreitas, ladeiras e casario da virada do século XIX para o XX. Cores fortes de pinturas recentes realçavam as fachadas. Rodeei a igreja e segui rumo às partes altas, optando pela estradinha que me levaria aos povoados de Macaco, Baixa Grande e Apolinário.

O calçamento irregular de pedras, as cercas construídas a partir do mesmo tipo de pedra, assim como algumas casas também de paredes de pedras, se destacavam sobre o solo fértil e cultivado. O traçado acidentado e sinuoso dos caminhos, os lajedos extensos, as plantações variadas em pequenas propriedades, a terra escura e úmida, diferenciavam os altos da região de Triunfo da aridez do vale sertanejo ao longo do qual se localizavam Salgueiro, Serra Talhada, Arcoverde.
Caminhei bastante apreciando o cenário quase tropical. Avistei o povoado de Apolinário ao fundo, tendo pequena capela postada sobre lajedo, de frente para o vale do sertão central. As pessoas trabalhavam duro na lavoura. Como o povoado se situava no início da descida da serra, mandacarus, xiquexiques e palmas, ainda que esparsas, começavam a aparecer. A temperatura também aumentara e o ar perdera o frescor da cidade, evidenciando a aproximação do calor seco e tórrido da caatinga.
Retornei ao centro de Triunfo, encostando o esqueleto em barzinho e detonando refrigerante de fabricação pernambucana, entre conversas com a balconista comunicativa.
Em noite estrelada, a margem iluminada do lago e as ruas do centro da cidade encantavam ainda mais. O pequeno movimento noturno de moradores caía bem. Sentei-me no bar e restaurante de sempre, tomei duas doses generosas da cachaça artesanal e repeti a carne de sol com macaxeira cozida e salada. Encerrei a noite com sopa de carne e legumes. Entre goles e garfadas conversei bastante com os simpáticos colegas da noite.
Saí cedo para caminhada rumo ao Pico do Papagaio, considerado o ponto mais alto de Pernambuco. Ninguém da pousada ou do bar acreditou que eu conseguiria a façanha. Sugeriram até que eu fretasse uma moto ou algo assim. Caso não chegasse ao topo, o trajeto percorrido certamente compensaria por si.
continua...

2 comentários:

  1. Interessantes estas suas viagens ao nordeste.Você não procura lugares badalados e descreve os locais e os moradores com maestria. Parabéns!
    Helena Silva

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  2. Oi Helena, obrigado pelo comentário. Seja ele elogioso ou não, é sempre bem-vindo. Realmente evito os destinos badalados e procuro aqueles menos descaracterizados, onde o povo, a paisagem e a cultura são mais autênticos. Me sinto melhor e me solto mais, fazendo com que reflita e escreva com mais propriedade. Fique à vontade para comentar e indicar os diversos relatos que publiquei, e ainda publicarei, das viagens pelo Brasil e exterior. Abraços!

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