domingo, 6 de fevereiro de 2011

do Nepal ao Camboja (parte 3/12)

...continuação
Último dia no Nepal. Kathamandu vivia o festival de luzes. Os moradores iluminavam, coloriam, alegravam a cidade com fogos e bombinhas. As crianças iam de loja em loja pedindo doações. À noite, vários estabelecimentos apagaram as luzes e acenderam velas. A cidade ganhou outra luz, mais mágica e fascinante. O Nepal e Kathmandu proporcionavam despedidas comoventes.
De madrugada rumo ao aeroporto. A cordilheira do Himalaia esteve presente durante o voo à Índia, pintando imagem inesquecível.
Do aeroporto, ônibus para a velha Delhi, à região de Pahargang, com a rua estreita, comercial, cheia de gente, veículos, animais. Hospedagem difícil após superar os pentelhos que queriam levar aqui e ali. Banho frio e refrescante, comida boa, sorvetes de complemento. Volta de reconhecimento nas imediações. O mesmo festival de Kathmandu acontecia nas ruas de Delhi. Os fogos de artifício, bombinhas, música alta, agitavam a cidade.
Logo cedo a bagunça começou dentro do hotel. Mas não vinha do festival. Dezenas de funcionários pregavam batentes e madeiras, batiam portas, falavam alto. Não consertavam nada. Nada acontecia. Em cenas comuns pela Índia, apenas desempenhavam atividades barulhentas e inúteis.
Na velha Delhi, o Forte Vermelho valia pela frequência diversificada de visitantes do campo e da cidade, de toda a Índia, que afluíam em ônibus fretados, velhos, lotados. Variedade de cores de pele, rostos, roupas, expressões, adornos dos indianos, que nos olhavam curiosos e assustados. Depois a grande mesquita, por rua longa, estreita e comercial, ocupada por muçulmanos, homens e mulheres vestidas de preto. Era outra Índia. Mergulho em deliciosa comida indiana, regada a refrigerante de manga.

Na principal estação ferroviária de Delhi, depois de preencher os formulários, entrar em longa fila, finalmente os bilhetes em mãos.
O trem a Amritsar foi confortável, com cadeiras amplas e espaçadas, serviço eficiente. Das janelas, terras planas, totalmente cultivadas com cereais e mostarda, nos estados de Haryana e Punjab.
Não havia pia nem chuveiro no banheiro do hotel em Amritsar, apenas torneira com água fria, instalada a um metro do chão. Era meio banho, sempre, mesmo ao lavar as mãos. A forte vazão espirrava água para todo lado, ensopando o banheiro, tornando o piso escorregadio e sujeito a tombos.
O Punjab foi um dos estados que mais sofreu com a separação criminosa entre Índia e Paquistão. Depois de ocupar militarmente a Índia por mais de cem anos, os invasores do império britânico jogaram muçulmanos contra hindus, provocando a partição da grande Índia em três países. Milhares de indianos, muçulmanos e hindus, foram massacrados durante a fuga para os lados opostos das fronteiras. A cidade principal do Punjab, Lahore, ficou no atual Paquistão. A cidade sagrada dos sikhs, Amritsar, na Índia.
A lanchonete servia pratos rápidos vegetarianos, principalmente o estupendo masala dosa, regados somente a refrigerante ou água de torneira. O refrigerante gasoso multiplicou por mil o efeito da pimenta.
Amritsar era feia, suja, empoeirada, cinzenta, poluída. O guia estrangeiro decepcionava a cada página. Ainda que de edição do mesmo ano, as informações não inspiravam confiança. Contava com erros grosseiros de mapas, preços, dicas. As recomendações suspeitavam pela parcialidade. Durante o transcorrer da viagem pela Índia e por outros países da Ásia, os defeitos desses guias seriam ainda piores.
Café da manhã em local escuro e espalhafatoso, parcamente iluminado com luzes vermelhas. Decoração de puteiro.

Longa visita ao Templo Dourado, local sagrado e de peregrinação para os adeptos da religião sikh. Para entrar, necessário tirar os sapatos e cobrir as cabeças com tecidos cedidos na entrada. O Templo Dourado, um dos locais mais belos e fascinantes da Índia, contava com o piso e as principais construções em mármore branco. A enorme piscina ocupava a parte central. Na ponta da água erguia o templo coberto de ouro, de formato retangular com núcleo alto e arredondado. Os sikhs se banhavam vestidos nas águas da piscina. Os guias espirituais cantavam versos sagrados dentro do domo central, acompanhados de instrumentos rústicos. Os alto-falantes propagavam os cânticos pela amplidão do ambiente. A beleza e leveza do cenário, o movimento lento dos fiéis, a água, o som contagiante tornavam a atmosfera especial. Ficamos ali sentados ou perambulando por quase o dia todo. Os frequentadores, retraídos e tímidos, trocavam sorrisos, leves acenos, saudações. Os raros que se aproximavam, o faziam de maneira desajeitada, mas sempre transmitindo curiosidade sincera, simplicidade, naturalidade. O senhor idoso e o casal com vários filhos se destacaram nos contatos, fazendo companhia, pedindo fotos, olhando sorridentes.
Retorno a Delhi em vagão com bancos duros de madeira. Em cada estação subiam mais passageiros. Não importava se no assento cabiam apenas quatro passageiros. O quinto, o sexto, o sétimo, cavava novo lugar. Fiz o possível para me garantir sentado. A maioria dos passageiros entrava e saía calada, revelava expressões tristonhas, não oferecia chances de conversas.
Em Delhi novamente à região de Pahargang. Os hotéis caros eram caros demais, os baratos, ruins demais. A má conservação dos hotéis e imóveis indianos assustava. Pisos, escadas, paredes, móveis, instalações elétricas e hidráulicas, pareciam cair aos pedaços. Era milagre nada explodir. A limpeza não ficava atrás. Tanto lençóis como cobertores exibiam manchas diversas, cores escurecidas. E no andar do hotel as obras pararam somente no meio da noite.
Em sebo optei por O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde. Novamente em inglês. Novamente releitura.
Nas calçadas do grande círculo de Nova Delhi os indianos ofereciam aos turistas pacotes de viagem, passagens, artesanato, jóias, maconha, ofertas de loja. Abordavam mal, com modos bruscos, desajeitados, sem convicção. Rejeitávamos com frases malucas, aleatórias, em português.
Viagem tranquila a Ajmer em trem executivo, mais caro, exclusivo para viagens diurnas, com lanche incluído. De Ajmer, ônibus comum, lotado, barato e rápido para Pushkar.

No hotel dentro de antigo palácio, com banheiro coletivo, a porta do quarto se compunha apenas de grade vazada, expondo o ambiente interno ao vento frio da noite.
Todos os hotéis de Pushkar iriam multiplicar os preços das diárias por cinco ou dez vezes em razão da feira anual de camelos. O mesmo ocorreria com os restaurantes. A fama da feira se espalhara pelo mundo e os turistas pagavam qualquer valor, contribuindo para inflacionar e alimentar a cadeia de aproveitadores. Falsos homens sagrados, pedintes, golpistas, fervilhavam pelas ruas na busca do dinheiro dos trouxas.
Era melhor partir e voltar depois do festival.
O sistema ferroviário do estado do Rajastão passava por reformas. Restou comprar passagens de ônibus para Jaisalmer em agência para lá de informal. Mas as demais eram ainda piores.
Do alto da colina próxima à cidade, a bela vista da cidade e da enorme quantidade de camelos estacionados. Independente do uso turístico, a feira servia como oportunidade privilegiada para comercialização dos animais e ponto de encontro dos moradores do deserto de Thar. Era fascinante caminhar por entre os camelos, donos e condutores, invariavelmente com turbantes coloridos. Os beduínos montaram barracas de comes e bebes, parque de diversões, serviços de dentista, barbeiro, massagem, emergências. Tudo improvisado. Um idoso implantava um dente em pacato cidadão do deserto que escolhera dentre os oferecidos em caixinha de papelão.
Os rituais hindus seguiam nos degraus da beira do lago. No meio dos verdadeiros, pentelhos profissionais disfarçados de homens sagrados vendiam cerimônias aos desavisados. Pushkar permanecia deslumbrante e relaxante, mas o clima comercial e turístico da feira ofuscava o autêntico. Aproveitadores se amontoavam nas ruas, becos, esquinas, calçadas, a fim de depenar alguém. Os turistas preservavam e até agravavam a situação, pagando para fotografar os malandros, adorando se passar por idiotas em cerimônias fraudulentas na beira do lago. Os becos e ruas mais afastadas do centro sofriam menor influência da comercialização da feira. Os pacotes turísticos não apareciam e os moradores sorriam e acolhiam com naturalidade.
Em barraca de sucos no meio da rua, ela pediu banana lassi. O vendedor entendeu ou fingiu entender bang lassi. Bang, espécie de droga legal, era vendida oficialmente em pontos licenciados. Ainda perguntou se era a primeira vez, se preferia forte ou médio. Ela tomou metade do copo. Logo se sentiu zonza, as pernas falharam, as coisas giraram ao redor. Permaneceu assim até o jantar, vomitando quase tudo. Seguiu-se moleza, sonolência, preguiça.
Fomos à agência esperar o ônibus rumo a Jaisalmer. Ela ainda se sentia mal, não enxergava direito, os movimentos do corpo não obedeciam ao cérebro. O homem que se dizia proprietário nos levou à outra agência e sumiu na escuridão. Ao verificar os bilhetes, o responsável da segunda agência afirmou não serem válidos, não se responsabilizando por nada. A possibilidade seria viajar na cabine do motorista ou em pequenos bancos de palha improvisados no corredor do ônibus. Ou então reaver o dinheiro na primeira agência e comprar novas passagens na dele para a noite seguinte. O dono da primeira agência, claro, desaparecera e deixara um adolescente atrapalhado que alegava nada saber. De volta à segunda agência, insistimos em viajar aquela noite. Ele repetiu as alternativas já mostradas. Decidimos arriscar o jipe lotado de passageiros e bagagens rumo à periferia de Ajmer para esperar o ônibus. Não havia terminal rodoviário, parada de ônibus, ou escritório de agência. O ônibus apareceu apenas à meia noite. Como seriam as próximas dez horas em banquinhos no corredor? Mas, ao embarcar, por encanto, arranjaram assentos para todos, eu, ela e mais quatro passageiros lesados em agência diferente. Os golpistas falavam com sorrisos benevolentes como se nos tivessem tirado da forca. E que sem a intervenção deles ficaríamos perdidos na noite. Obviamente esperavam ser recompensados. Nem um centavo! Os quatro gringos, também lesados, encheram os picaretas de rúpias e dólares. Afinal, não há malandros sem otários.

O ônibus chacoalhava demais na parte traseira. Esperei horas para conseguir descer e me aliviar. Nada de banheiros ou mictórios na parada. Penetrei nos fundos de construção semiabandonada, escolhi a sombra de uma árvore e mandei ver.
O ônibus encostou pela manhã no lado externo do forte em Jaisalmer. Com as mochilas nas costas, entramos na cidade fortificada rumo a hotel barato e ruim. Comemos algo e reservamos hotel melhor para o dia seguinte, também dentro do forte, dotado de banheiro privativo, sacada ampla com vista panorâmica do deserto de Thar. A maioria dos banheiros indianos não possuía papel higiênico, apenas torneira ao lado do buraco no chão. Muitos não tinham chuveiros. Outros não ofereciam pia.
Reencontro com o casal de franceses do Nepal. O homem era falador e boa companhia. Ela mantinha-se calada com expressão de tédio. A cidade parecia mais vazia que durante minha primeira visita dois anos antes. Hotéis e restaurantes não lotavam. Talvez a manada de turistas estivesse concentrada na feira de camelos de Pushkar. Era delicioso se perder nos becos estreitos da parte interna da fortificação. Os demais turistas apareciam somente pelas manhãs e se concentravam ao redor do palácio e templo jain.
Encontrei um exemplar em inglês de Rainha Bandida da Índia, da escritora indiana Mala Sen. Contava a longa e atribulada vida de Phoolan Devi, uma espécie de versão indiana e feminina de Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, pelas ravinas e vilarejos da Índia central.
Dias soltos, relaxantes, reconfortantes, pela fascinante Jaisalmer, pelos becos do forte e pelas ruas da cidade abaixo dos muros. Entre passeios sem compromisso, leituras na sacada do quarto do hotel, alternando os olhares entre o livro e o deserto de Thar. O cenário se valorizava ainda mais durante a noite, quando as luzes amareladas iluminavam as construções e os becos, ambos de pedra. As casas reservavam interiores arrumados e limpos. A atmosfera geral emanava magia e poesia do deserto.
Em país com extensa e excelente rede ferroviária, temporariamente fechada para manutenção no Rajastão, os ônibus indianos careciam de conforto e segurança. De Jaisalmer, troca de ônibus em Jodhpur e desembarque em Udaipur antes do dia clarear. O famoso lago da cidade ficava à pequena caminhada do hotel, acessado de riquixá.
Dias para apreciar a região do palácio sem pressa. Era a grande vantagem de viagens longas, sem datas, sem roteiros fixos. Deixar o adiável para o dia seguinte e só fazer o que dava na telha.
Por agência local a passeio de bate e volta em Ranakpur. A maioria dos turistas era de indianos de classe média. Logo após a partida pela manhã o pneu do ônibus furou. Mas houve tempo para apreciar o estonteante templo jain, com milhares de colunas em mármore e trabalhadas em desenhos diferentes entre si. A iluminação natural, o silêncio, a limpeza extrema, os tons claros do mármore das colunas e imagens, requeriam calma e relaxamento. Imperdível! À noite volta a Udaipur.
Incursões pelos lagos da parte norte da cidade, vazia de turistas e estrangeiros, pelos becos da cidade velha, com casas azuis, desenhos de marajás, imagens religiosas nas paredes das residências. Dezenas de restaurantes se espalhavam na margem do lago principal com vistas privilegiadas da região. Mas a comida deixava a desejar. Sem falar nos amontoados de gringos sentados por ali durante horas e horas, a fim de verem e serem vistos. Em avenida movimentada e afastada do lago encontramos restaurante frequentado somente por indianos, servindo comida autêntica, saborosa, extremamente apimentada. Perfeito.
As lavadeiras dos degraus na beira do lago não gostavam de serem fotografadas. Indiferente à cultura local, uma estrangeira loura e magrela fotografou-as bem de perto. Não satisfeita com a grosseria, presenteou as mulheres com algo parecido com creme facial, talvez como compensação ao desrespeito. Sem trocar nenhuma palavra com as indianas, a gringa imediatamente se retirou. Os vários cafés nas proximidades do centro velho de Udaipur não se cansavam de exibir aos turistas vídeos do filme 007 contra Octopussy, com cenas filmadas na cidade.
continua...

2 comentários:

  1. Perdão, não estou lendo e sim devorando. História, geografia, se misturam, mostrando-nos uma cultura com suas belezas, suas deficiências...O deserto de Thar, como descreve deve ser uma visão única. Imperdível esta viagem, continuo na carona.

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  2. Oi, Ivete!!!
    E imperdíveis são seus comentários. Eles são um baita incentivo para eu continuar viajando e relatando.
    Leitores como você é que motivam tudo.
    Abraços!

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