quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

do Nepal ao Vietnã (parte 6/7)

...continuação
No vilarejo de Myinkaba, presenciei intrigante cerimônia de iniciação de dezenas de crianças, prestes a se recolherem por anos dentro dos mosteiros budistas. Desfilavam pintadas, montadas em cavalos, vestindo coroas, usando guarda-chuvas dourados. As expressões não eram de felicidade e várias choravam. Mais tarde raspariam os cabelos, se reuniriam para comer e dançar músicas típicas ao som de xilofones, gongos, tambores e harpas. E não faltavam as cores vivas, muitas cores vivas, em tudo.
O guia mais calado e atrapalhado somente abria a boca para dizer inutilidades e chavões. E não sabia responder às minhas perguntas. O guia principal, budista dogmático, não se livrava dos fedidos charutos. Alegava que no budismo nada é permanente e que, por isso, não se importava com danos aos pulmões. Ambos se esquivavam de qualquer pergunta que saísse do dogmatismo. Abusavam de frases decoradas do budismo até ao discutir horários da programação. Escarravam e assoavam o nariz sem lenço ou papel, com direito a muito barulho, inclusive durante as refeições. A maioria da população se comportava assim, até as atraentes birmanesas, para meu desgosto.
Mesmo fechado, o país vomitava lixo ocidental dos alto-falantes. E importava também refrigerantes, uísques, cigarros. Placas com marcas das famigeradas transnacionais se espalhavam nas cidades. As imagens de Buda eram onipresentes, em estátuas, grandes ou pequenas, pedra ou ouro, pinturas nas paredes e tetos. Apelavam até para as imagens nos televisores nos templos mais modernos.

Ainda nos arredores de Bagan, o centro de treinamento de fabricação de produtos em laca. Usavam tiras de bambu ou crina de cavalo como matérias primas. Em seguida, vários banhos de laca, pinturas, desenhos com estilete e polimento. Trabalho cuidadoso, bem feito, primitivo.
O guia mais jovem e atrapalhado seria meu único guia pelos demais interiores do país. E sem saber quase nada de inglês ou dos locais a serem visitados. Partimos pela manhã, percorrendo estradas tão estreitas que precisava parar quando vinham veículos em sentido contrário. Vários trechos nem eram pavimentados. Iniciamos a subida da serra e logo atingimos os 1.300 metros de altitude. Pequenos ajuntamentos de barracos de bambu nas margens da estrada, invariavelmente suspensos e precários, muitos nem sequer com móveis, abrigavam famílias sobrevivendo aos trancos e barrancos. Os pedágios de religiosos budistas abundavam nas estradas, interrompendo o tráfego, coagindo os passantes a doarem dinheiro para a construção de mais templos. Diversas caminhonetes lotações e ônibus velhos cruzavam pelo caminho. Chamá-los de lotados seria eufemismo. Além dos esmagados da parte interna, havia gente até nos tetos dos veículos. Muita gente misturada com muita bagagem.
Entramos no ramal para Pindaya. Nas margens da estrada, pertencentes ao estado de Shan, circulavam habitantes com trajes típicos da região, predominando os tons avermelhados, com panos nas cabeças. Seguimos direto para as grutas, na verdade templo budista, aproveitando as reentrâncias calcárias para instalar milhares de estátuas de Buda nas paredes, tetos, pisos. Cada ponto servia para determinados temas. Havia estátuas que atendiam até os interessados em ganhar na loteria. Outras eram para pedir sorte. Mas apenas na próxima vida, claro. A despeito da beleza natural, o local se reservava a romaria de budistas fanáticos e alienados. Estávamos no alto da montanha e a vista dali era estupenda. A cidade e o lago se estendiam abaixo.
Pernoite em Pindaya onde jantamos sopa e lamem reforçado com galinha. Comi muito e bem. Os moradores da região dormiam cedo, pois tinham medo de serem recrutados pelas patrulhas do exército como voluntários para obras civis em estradas e demais trabalhos pesados. Esfriou durante a noite e os cobertores não foram suficientes.
Despertar ainda no escuro e descida por estradas estreitas e fascinantes até a margem do lago Inle. O nascer do sol veio em meio à intensa neblina. Na margem do lago fretamos barco para quase todo o dia.

Pescadores e barqueiros remavam com apenas uma perna, se sustentando na outra, as mãos livres para pescar. A cerração na parte mais larga do lago e as montanhas ao redor davam encanto especial à paisagem. Atingimos o trecho onde ocorria o mercado flutuante, nas proximidades de vilarejo lacustre, ao longo do canal e entre fileiras de palafitas. Os barcos, transportando produtos agrícolas, entre outros, negociavam quando se tocavam, vendiam, compravam, trocavam em vaivéns agitados. Apesar da pobreza, as palafitas desenhavam conjuntos harmônicos e vistosos sobre as águas. As construções se adaptavam perfeitamente às condições climáticas. Adiante pelo lago, pelos canais que formavam o vilarejo, cruzados por caprichosas pontes de madeira. Os moradores fabricavam e vendiam artesanato dentro e foras das cabanas. Na extremidade do vilarejo, o pagode com torre parcialmente dourada. Mais adiante, o mosteiro budista em madeira sobre as águas, construído há mais de dois mil anos, guardava diversas estátuas e imagens douradas de Buda. No centro se destacava a cadeira de madeira finamente trabalhada e reservada às pregações. Mesmo depois de visitar dezenas de templos e pagodes, aquele chamou bastante atenção.
Almoço na simpática pousada em Nyaung Shwe, sob o sol agradável, com vista relaxante das águas do lago Inle, bem ao lado.
Subida do relevo em direção a Taunggyi, em cujo alto da serra, outro pagode com vista panorâmica do vale e da cidade. A 1.450 metros de altitude, Taunggyi era moderna e sem atrativos especiais. Os moradores não vestiam sarongues. Dentro de casacos de couro com símbolos ocidentais, os rapazes imitavam atores do cinema estadunidense.
O guia bobão e atrapalhado nada articulava além de estúpidas frases decoradas, tais como:
“este é o hospital da cidade”,
“ali é o exército”,
“os soldados se vestem de verde em Mianmar”,
“esta cidade se chama Taunggyi”,
“Taunggyi é o nome desta cidade”.
E ao entardecer, me levou a lugar vazio e abandonado, com mato alto, lixo, onde o pôr-do-sol foi emoldurado por fios de eletricidade, construções em obras, estradas asfaltadas. Ainda bem que o país era fascinante e me fazia ignorar o sujeito.
Pela manhã, voltas pelo mercado ao ar livre de Taunggyi. Tipos diferentes e coloridos vendiam de tudo, nas barracas, calçadas, ruas.

Descida da serra por estrada sinuosa e estreita. Os motoristas, porém, não dirigiam perigosamente, havendo sempre respeito e solidariedade. A mão de direção em Mianmar fora recentemente transferida para a direita. Mas os volantes dos carros continuavam também do lado direito. Nas ultrapassagens, o motorista precisava avançar bastante na pista contrária para conseguir ver os veículos no outro sentido. Tentava não prestar atenção, mas sentia calafrios nessas tentativas. No toca-fitas do carro rolava a tal de Miss Sweet que, segundo o bobalhão, cantava músicas birmanesas. Apenas a língua era local. As melodias, arranjos, estilos de voz eram cópias ruins do lixo estadunidense.
Durante a espera do trem em Thazi, me instalei em pousada precária. As instalações davam pena. Não havia banheiro nos quartos. Os chuveiros não contavam com vasos sanitários ou latrinas. Senti dor de barriga durante o banho. Descarreguei ali mesmo com o chuveiro aberto. Tentei empurrar o barro até o ralo. Não era ralo e toda a massa marrom escura tomou o caminho de volta. Encontrei finalmente o ralo, arrastei tudo novamente e a coisa se foi. Mas antes disso o banheiro alagou. Fechei o chuveiro até a água suja baixar. Reabri então o registro e voltei ao banho normalmente.
E lá fui eu e o bobão do guia em direção a Yangon. O trem era bem melhor que o da ida. Corredor central, dois bancos largos e espaçados. Apenas um banco do outro lado do corredor. Reclinavam o suficiente e envolviam pelo conforto. Os garçons serviram arroz frito com galinha e ovo. O vagão oferecia música ambiente de mau gosto, do tipo da tal Miss Sweet. Depois ligaram o vídeo, com filme local dramático e triste. A programação seguiu com musicais horrorosos e ocidentalizados. O mais interessante veio com as apresentações folclóricas birmanesas. Comediantes e improvisadores se revezavam. Duplas interpretavam canções típicas. Curiosíssimo.
Despedi-me do guia atrapalhado na chegada em Yangon. Ainda o adverti sobre os incontáveis erros cometidos, aconselhando-o a estudar mais para se tornar guia de verdade. Fez cara de paisagem e não sei se entendeu o recado. Reencontrei o primeiro guia e passeamos mais pela capital. Fomos ao parque, extenso e refrescante, ao mercado local, ao centro da cidade. Depois almoçamos em restaurante típico birmanês na beira do lago. Entre infinidades de assuntos, ele citou que nas universidades estavam proibidas as conversas sobre política e assuntos afins.
Comecei a sentir saudades de Mianmar antes mesmo de partir. As birmanesas substanciosas, bonitas, sorridentes, charmosas, insinuantes. A hospitalidade, o jeito antigo e calmo do povo. As belezas naturais, arquitetônicas, históricas. A comida picante e saborosa.
O avião decolou rumo à Tailândia. Mas eu queria ficar.
Na feia Bancoc tomei táxi até a pousada através de trânsito infernal.
Na manhã seguinte, peguei o trem com destino a Ayutaya, a antiga capital da Tailândia. Localizado no centro da cidade, o sítio histórico cobrava ingresso caro para ver restos de antigos templos e palácios, ruínas abandonadas em meio a favelas e oficinas mecânicas. Não havia qualquer preocupação arqueológica, apenas comercial.
Virada de ano em país chato como a Tailândia, em meio a turistas desinteressantes. Bebi muito do uísque tailandês e o efeito tenebroso veio a seguir. Após acordar tarde e com bruta ressaca, andei aos templos nas margens do rio Chao Phraya, lotados de turistas, exibindo gigantescas imagens de Buda. Bancoc não animava. Cidade feia, sem charme, sem opções sedutoras de passeios. Depois da Índia e Mianmar, tudo parecia sem graça.
Perambulei com novos colegas pelos becos e palafitas até o local onde atracavam os barcos reais, usados apenas em datas comemorativas. Nesses dias o rei e a rainha, dezenas de remadores, mais os barcos da comitiva, desfilavam pelo rio diante dos moradores. À tarde, nova visita ao Grand Palace, o conjunto de templos, palácios, museus, jardins, com muita foliação a ouro, brilho e imponência nas construções diversificadas. Havia mais turistas que formigas. Nas dependências internas, aonde não podia entrar de roupa esporte, bermuda ou sandálias, havia uma estátua de Buda em jade. Circulamos de barco pelos canais do rio Chao Phraya, onde as construções possuíam somente acesso fluvial. Barcos lotações buscavam e entregavam os moradores em horários pré-determinados. Casas simples, favelas, habitações de classe média, de madeira ou alvenaria, templos, lojas, se misturavam nas margens dos canais.

À noite fui arrastado à deprimente região de Patpong, a zona de prostituição da cidade. Tailândia figurava entre os paraísos do turismo sexual, da produção e comercialização de tóxicos, dos crimes organizados. As putas serviam como escravas brancas aos turistas do assim chamado primeiro mundo. Patpong compunha-se de dois quarteirões entupidos de ambulantes que vendiam mercadorias falsificadas. Os puteiros e salas de striptease, geralmente com as portas abertas, exibiam cenas previsíveis de seminuas se balançando ao lado de roliças barras de ferro. Nada diferente dos congêneres pelo mundo afora. De pé, nas portas dos estabelecimentos, os funcionários chamavam trouxas afirmando que aquela casa era a melhor e que não aplicava golpes. Nenhum cliente tailandês. Apenas os espertos cidadãos de evoluídos países tais como Estados Unidos, Canadá, Europa, Japão, Austrália, Nova Zelândia.
Apressei o passo e dormi cedo.
Em espera dos trâmites burocráticos para entrar no Vietnã, mais espetáculos da Bancoc voltada ao turismo estúpido. A fazenda de orquídeas e borboletas não passava de imenso ponto comercial com raras orquídeas e borboletas. Mas o pior ainda estava por vir, o mercado flutuante, mais conhecido por floating market. A expressão em inglês combinava com o lugar. Milhares de lojas, milhares de turistas. Barcos vendiam produtos industrializados para os gringos, como falso artesanato, ou apenas em exibição para fotos. Era a Tailândia ocidentalizada voltada para os turistas ocidentais. Retornamos de tuc-tuc, as motos com carroceria para quatro pessoas. O piloto efetuava manobras arriscadas em alta velocidade. Ziguezagueava por entre os demais veículos e motos. Tirava finas incríveis, cantava pneus. Mas chegamos vivos e inteiros.
Embarcamos com destino ao Vietnã. Ficaria livre, pelo menos até a volta, da deprimente Tailândia.
A exploração do Vietnã começou pela plana cidade de Saigon. Poucos prédios, casas mal conservadas, poucos carros, muitas motos, bicicletas e ciclos, os táxis em bicicletas onde o passageiro sentava na frente do condutor. A primeira impressão agradou. O povo sorria e não assediava. Passeio pelo mercado, rio, centro da cidade. Poucos mendigos e sem teto. Placas de marcas das grandes transnacionais e propaganda de importações se espalhavam pelas ruas. Refeições eram servidas nas calçadas. A fim de atravessar as ruas movimentadas e sem semáforos, bastava caminhar em velocidade normal e constante, pois os veículos, motorizados ou não, desviavam e nunca ameaçavam. Os vietnamitas, mesmo rumo às festas e enfeitados, não quebravam os costumes, se locomovendo de motos, lambretas, bicicletas.
Com cinco mil anos de existência, a língua vietnamita fora convertida para o alfabeto latino no século XVIII. Mas apenas a escrita. A língua se manteve monossilábica e multitônica, onde as sílabas podem apresentar até seis tons. Foi criado complexo sistema de acentuações na intenção de diferenciar esses tons. Há palavras com mais de um sinal na mesma letra, acima ou abaixo dela. Ao tentar dizer uma coisa, o som emitido poderia significar outra completamente diferente, de sentido oposto ou mesmo ofensivo.
Jantar em restaurante de comida regional, com mesas na calçada. Envolvia a maioria dos itens em papel de arroz e depois os mergulhava em molhos temperados. Provei lulas, sapos, diversas qualidades de verduras.
Valeu a pena circular pelos mercados e ruas, tomar contato com os moradores e comerciantes do bairro chinês de Cholon, sempre simpáticos e alegres. Visita ao impressionante Museu de Crimes de Guerra, que expunha os horrores cometidos pela França, Japão e Estados Unidos durante as invasões ao Vietnã. Bem montado e explicado nas diferentes fases, o espaço incluía fotos das atrocidades estadunidenses contra os vietnamitas, em torturas, chacinas, destruições, assassinatos, arrogância imperial. A guilhotina francesa foi utilizada contra o povo vietnamita até fins da década de 1950, quando a França ainda ocupava militarmente o país. Quase 200 anos após a revolução francesa! O museu localizava-se em bairro com ruas arborizadas e parques muito verdes. Famílias de mendigos pediam esmolas, enquanto carros importados circulavam pelas ruas. À saída do museu as ruas lotaram de bicicletas e motos vindas das saídas das escolas.
continua...

2 comentários:

  1. Comecei a sentir saudades de Mianmar antes mesmo de partir. As birmanesas substanciosas, bonitas, sorridentes, charmosas, insinuantes. A hospitalidade, o jeito antigo e calmo do povo. As belezas naturais, arquitetônicas, históricas. A comida picante e saborosa. Eu também senti saudades.

    ResponderExcluir
  2. Oi Ivete!
    Mianmar vale cada sacrifício, cada contratempo, cada desconforto, enfim, cada obstáculo. O país e o povo, a despeito da brutal ditadura, envolvem de tal maneira que não queremos ir embora.
    Preciso voltar lá, antes que o país se torne um parque de diversões do ocidente, como a deprimente Tailândia.
    Abraços!

    ResponderExcluir