quarta-feira, 17 de novembro de 2010

do Amazonas a Sergipe (parte 4/7)

...continuação
Milhares de periquitos me presentearam com espetáculo único na praça defronte à basílica de Nazaré. Os trinados simultâneos provocavam som estridente enquanto pousavam nas samaúmas e mangueiras. Migravam de uma para outra enquanto aquela sinfonia não parava. O pôr-do-sol se aproximava e, subitamente, a partir de sinal do líder, eles deixavam os galhos das árvores e sobrevoavam a praça em blocos de centenas ou milhares. A sincronia dos voos era tanta, os movimentos e curvas tão acentuados, que os frequentadores da praça ficavam paralisados para apreciar. Moradores dos prédios vizinhos saíam às janelas e sacadas a fim de não perder nenhum detalhe.
Dei uma passada na feira pan-amazônica de livros. Assim como em tantos outros eventos do gênero, tratava-se de mais uma exposição de editoras e livrarias, estritamente comercial, nada educativa. A maioria dos expositores colocava em destaque nas prateleiras justamente aquilo que mais lhes dava lucro, o lixo esotérico e de autoajuda, descartáveis e alienantes em geral. Se a feira visasse menos o lucro fácil, fosse mais popular e educativa, com preços acessíveis, o resultado cultural, e até comercial, seria mais positivo.  
Decidi seguir viagem ao Maranhão. À noite, durante o embarque dos passageiros no ônibus velho para Pinheiro, ficava óbvio que eu estava a caminho de outro estado, mais pobre, bem mais pobre. Muitos negros de rostos sofridos e cansados, muita bagagem em malas, sacolas, sacos precários. O ônibus partiu sob o céu estrelado, rodou por estradas surpreendentemente conservadas e sem buracos, em contraste com os anos anteriores. Em Pinheiro embarquei em ônibus grande e, para a alegria da maioria dos passageiros, sem ar condicionado, ao contrário dos apertados e gelados micro-ônibus, comuns naquela linha. Os próprios passageiros poderiam controlar a ventilação natural do ônibus pela abertura das janelas. Atravessei de balsa a baía de São Marcos e no meio da manhã já estava bem hospedado no centro histórico de São Luís.

Saí à noite para beber e petiscar no centro histórico, ao som de suave música ao vivo. Escolhi mesa na rua de paralelepípedos, sob as árvores, com vista para os sobrados barrocos da Praia Grande. São Luís à noite continuava inigualável, com iluminação amarelada tingindo levemente as pedras do calçamento e os casarões antigos e azulejados. Após duas substanciosas caipirinhas, bolinhos de aipim com carne seca, caldo de mariscos, ouvir música popular brasileira, resolvi retornar ao hotel sem pressa. Subi a ladeira até o início da rua da Estrela, dando de cara com o largo da catedral e do palácio dos Leões. A visão do conjunto arquitetônico, elegantemente iluminado, deslumbrava completamente vazio naquela hora da noite. Soprava vento fresco do mar. Retardei os passos a fim de absorver a atmosfera local. Atravessei lentamente a praça, avancei pelo beco em curva. Mais à frente cruzei pontos de travestis e prostitutas, desemboquei na rua do Egito, dobrei à direita rumo ao largo do Carmo. Não era a primeira e nem a última vez que percorria as ruas silenciosas do centro histórico de São Luís, mas sempre me emocionava.
De manhã peguei a rua da Palma até o fim, por entres sobrados barrocos mal conservados. Desemboquei no largo do Desterro, pequeno e simpático com casas pobres ao redor e a singela e antiga igreja do Desterro. Do outro lado, o barranco e a vista da baía de São Marcos. O calçamento combinava com o estilo arquitetônico local e com os casarões azulejados. Como o largo se situava no final da rua, que depois virava beco sinuoso e em ladeira, não havia movimento. A tranquilidade e o silêncio estavam garantidos. Sentei-me no banco sob a sombra da árvore com direito à brisa refrescante da baía que não parava um minuto sequer. A moradora da casa do canto me pediu ajuda para armar o varal de roupas. Ela e o senhor idoso reclamaram das más condições de vida, do abandono pelos órgãos públicos, da falta de perspectivas. O tom das vozes continha forte amargura e sensação de impotência. As habitações do largo marcavam pela precariedade, sobretudo nos interiores miseráveis, mais parecendo cortiços, depósitos de seres humanos, do que moradias dignas. Mas os moradores conquistavam pela simpatia e pelo prazer em trocar dedos de prosa.
Garimpei livros em sebo da Praia Grande. Encontrei verdadeira raridade por apenas um real, Apelo à Razão, coletânea de editoriais do extinto jornal Planeta Diário. Antes gargalhei feito um maluco enquanto lia, no corredor do sebo, o primeiro editorial, hilariante, como sempre.
O ônibus atravessou a ponte sobre a baía de São Marcos, me transportando a outro mundo, a São Luís moderna, moradia das elites e emergentes, das lojas pretensiosas, restaurantes e bares, lagoas, hotéis caros. Mais adiante começavam as praias de Ponta da Areia, São Marcos, Calhau, na qual desembarquei na avenida à beira mar. Dunas protegiam as mansões da classe dominante maranhense. Faixas de corrida e caminhada, quiosques padronizados de madeira no calçadão, a areia plana e extensa da praia, sem charme e quase sem sombra, mas limpa e vazia.

Retornei ao centro histórico, o local mais vivo e sedutor de São Luis. A Praia Grande estava mais agitada naquela noite de quinta-feira. Perto da meia noite a animação era intensa e ninguém pensava em ir para casa. A tranquilidade e o silêncio reinavam nas demais ruas parcamente iluminadas. Nesses trechos ouviam-se o som dos passos e do vento.
Embarquei em furgão rumo a São José do Ribamar. Como já conhecia a cidade e o sol torrava, circulei pouco e entrei em restaurante com vista panorâmica do mar, praia, parte baixa da cidade, da estátua de São José do Ribamar na ponta da ilha. Deixei o tempo passar. Detonei três caipirinhas, petisquei sururu ao leite de coco. Permaneci horas naquela preguiça contemplativa, observando o mar, os raros banhistas naquele sol implacável.
O Maranhão não diferia dos demais estados quanto à cobertura pela mídia burguesa das eleições. Os meios de comunicação não passavam de panfletos de má qualidade, histericamente a favor dos interesses da classe dominante, representada por esses e aqueles políticos. As manchetes e textos enojavam tamanha a manipulação, distorção, omissão de informações. E todos os velhos ditadores, sempre os mesmos, se candidataram a governador, senador, deputado. Os mesmos nomes que batizavam ruas, praças, bairros, prédios públicos, centros culturais e esportivos.
Voltei à cidade de Raposa no noroeste da ilha. Fiquei nas imediações dos barcos e bares dos pescadores, ambiente barra pesada onde perambulavam bêbados, prostitutas decadentes, olhares desconfiados. Mas era trecho autenticamente marginal, sem máscaras. À frente do cais, improvisado com pedras, após a estreita faixa de água, extensa barreira de areia incluía dunas que escondiam praias mais adiante.
O ônibus partiu no meio da tarde rumo ao Ceará. São Luís se agitava com o processo eleitoral. Da janela do ônibus pude testemunhar, mais uma vez, a miséria dos interiores maranhenses. Vilas e cidadezinhas, inteiras ou quase, de casebres de taipa, cobertas de palha, ocupadas por famílias aglomeradas, vegetando em condições subumanas, como animais, muito abaixo da linha da pobreza. Na porta das escolas quebradas, caindo aos pedaços, localizadas na beira das estradas, os miseráveis se acumulavam, se apertavam, fixavam os olhares desesperados para dentro dos ambientes, na vã expectativa de que, a partir daquela farsa eleitoral, surgisse a luz no fim do túnel e os retirasse da indigência.
Desembarquei ao amanhecer em Ubajara nos altos da serra de Ibiapaba, noroeste do Ceará. Desabei na cama do hotel básico. Alguma coisa me picava sob o lençol, sem me impedir, contudo, de adormecer imediatamente.
Repeti a visita ao parque nacional de Ubajara. A área total da unidade fora ampliada em mais de dez vezes. A trilha que cortava o parque, da parte alta até a parte baixa, aumentara e eu percorreria novos caminhos. Bem cuidada e na sombra, a trilha valeu pela vegetação exuberante, quedas d’água, paredões rochosos, desnível de 430 metros até a boca da gruta de Ubajara. Percorri os trechos abertos à visitação da gruta, contemplando os espeleotemas cobertos com óxido de ferro. Cortinas calcárias muito finas e onduladas pendiam do teto e formavam desenhos inusitados. A rápida volta de bondinho até o alto do parque nacional encerrou o leve passeio.

O inverso do que ocorrera na passagem do Pará ao Maranhão, aconteceu do Maranhão ao Ceará. Subira o nível social dos moradores, melhorara a aparência das zonas urbanas, das construções, comércio. E como o Pará e o Ceará jamais foram paraísos da justiça social, a situação do Maranhão, abandonado no fundo do poço, beirava a catástrofe. Ubajara apresentava ruas e casas bem conservadas, comércio movimentado, moradores pobres, mas não miseráveis, praças, calçadas inteiras, ainda que estreitas. E a mania doentia de podar as árvores das ruas e jardins em figuras geométricas e pequenas. Além de mutilar a vegetação e estragar a paisagem, o crime diminuía as sombras tão procuradas durante os dias quentes.
À noite optei por mesa externa de bar de esquina, enquanto as internas lotavam pela transmissão pela televisão da segunda divisão do campeonato brasileiro. O cearense produtor de maracujás dividiu a mesa comigo. Bem casado, como fazia questão de repetir, possuía três amantes fixas. Aquela noite passaria com a de 16 anos, apesar dos recados insistentes e apaixonados da esposa no celular. Contou proezas dos empreendimentos agrícolas e principalmente dos amorosos. Acabei por me juntar às outras mesas. O bar de esvaziava, os frequentadores se dirigiam às festas nas cidades vizinhas de Tianguá e São Benedito.
Embarquei bem cedo em ônibus para Fortaleza. As estradas estavam razoavelmente conservadas. Após a encantadora descida da serra de Ibiapaba, coberta de mata nativa de médio porte, a paisagem mudou radicalmente. A caatinga rala, seca, cinza, cortada eventualmente por riachos sem água ou com apenas poços úmidos e isolados, se impôs até as primeiras ruas de Fortaleza. A rodovia cruzou pequenos serrotes áridos e pedregosos. Sentada no outro lado do corredor do ônibus, acompanhada de criança pequena, uma senhora não parava de falar, alto, rouca, o tempo todo, sobre tudo. Os passageiros próximos davam corda e ela se animava mais e mais. A menina ao lado da matraca urinava sempre que cochilava. Assim que ela se levantou para desembarcar na periferia da capital, o assento e o vestido estavam úmidos.
Do terminal rodoviário de Fortaleza fui à pousada pequena e de bom aspecto na decadente praia de Iracema, com quarto claro e ventilado pelo vento do mar que, de tão forte e constante, riscava os vidros da janela.
Jantei em restaurante naturalmente ventilado, com música ao vivo suave, na base de violão, percussão leve, voz, repertório bem escolhido. Nas avenidas de Meireles, e principalmente em Iracema, de todos os lados, meninas se prostituíam com sorrisos enormes e roupas mínimas. Estrangeiros e coroas locais predominavam entre os clientes. Travestis drogados dançavam como desvairados pelas calçadas da avenida da beira do mar. O vento não parava nunca e a noite jamais abafava.

Pela manhã, peguei o calçadão da praia e segui rumo a Mucuripe, onde se concentravam barracas de vendas de peixes e frutos do mar, jangadas estacionadas na areia da praia. Pescadores de folga jogavam baralho sob a sombra. Tudo se comportava como há décadas. Nem parecia que do outro lado da avenida erguiam-se arranha-céus envidraçados abrigando hotéis e residências de alto padrão.
À medida que eu retornava, rumo a Iracema, o aspecto de tudo caía de qualidade, o calçadão tornava-se mais estreito e quebrado. Após o fim da praia, surgia outro calçadão em contato direto com as ondas do mar, entre trechos quebrados ou em ruínas, pela violência das marés, pelo abandono geral. Era por ali, nas paralelas e transversais, que se concentravam os bares, restaurantes e casas noturnas frequentadas quase que exclusivamente por putas, travestis, estrangeiros, turistas deslumbrados.
Avancei em direção ao centro cultural Dragão do Mar, área de bares, restaurantes, salas de cinema, teatros, galerias de arte, concha acústica. Espaços democráticos acolhiam público diversificado.
Nunca vi tantas formigas circulando livremente em um quarto de hotel. Pequenas e grandes, elas se movimentavam como loucas, desorientadas, às centenas, pelo quarto todo. Talvez viessem da batente podre do banheiro, talvez das janelas ou porta de entrada do quarto. Brotavam dos quatro cantos e aos montes.
Ao entardecer, o azul do mar e as ondas bravas valorizavam a paisagem no calçadão da praia do Mucuripe. Na lagoa do Banana me sentei na beira da água, apreciando o silêncio do anoitecer, enquanto enormes sapos pulavam rumo à lagoa. Na volta, a lua cheia e brilhante dava espetáculos de imponência sobre o mar.
Praia longa, com dunas baixas, pouca vegetação, mar agitado e correnteza forte, a Prainha estava praticamente vazia em pleno domingo de sol. O vento forte e constante retirava a sensação de calor. O senão ficou por conta dos triciclos motorizados e peruas dos ricaços correndo impunemente pelas areias da praia, ignorando os pedestres.
Fortaleza se mostrava cidade cheia de atrações não turísticas. Boa comida servida nos incontáveis restaurantes, cultura em evidência, vento constante e refrescante, povo simpático e prestativo, calçadão agradável para caminhadas na beira da praia. Defeitos, claro, não poderiam faltar em cidade que inchou sem planejamento ou investimentos sociais, graças ao êxodo rural gerado pela concentração da terra e a ausência de reforma agrária. Mas Fortaleza, apesar dos pesares, agradava e muito.
O ônibus para Pernambuco, gelado pelo ar condicionado supérfluo, partiu à noite em linha que passaria pelo Rio Grande do Norte, Paraíba, seguiria para Alagoas e terminaria em Aracaju, incluindo paradas em Aracati, Mossoró, Catolé do Rocha, São José do Egito, Sertânia. Dois assentos atrás do meu, instalou-se alagoano com destino a Palmeira dos Índios que tagarelava e adorava cantar. E cantava não aos sussurros, mas em volume normal de voz, até agradável, imitando Zé Ramalho. O repertório infindável se compunha das canções marcantes da música popular brasileira. E incompletas, com letras alteradas pelas falhas de memória. Bebia no mínimo uma lata de cerveja em cada parada do ônibus, se soltando cada vez mais. Os passageiros querendo dormir começaram a se irritar, chegando a ameaçá-lo. O cantor, impassível, respondia frases nem sempre inteligíveis. Somente perto da meia noite se calou e a paz voltou a reinar no interior do ônibus.
continua...

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