quarta-feira, 20 de outubro de 2010

do Acre à Bahia (parte 4/7)

...continuação
Durante a caminhada por uma única rua, desde o centro, foi possível notar a mudança brusca do bairro de ricos de Batista Campos, com amplas praças, mangueiras centenárias, residências de alto padrão, até a miséria do bairro de Cremação, com favelas, esgoto a céu aberto, muito lixo, nenhuma arborização, quase sem calçadas. Mas não faltava o ópio, na forma de inúmeras igrejas empresariais.
O televisor do salão do café da manhã do hotel estava vomitando lixo de alguma das tantas religiões empresariais. Eram bobagens e mais bobagens dogmáticas. No momento em que ninguém reparava, mudei de canal.
Almoço tardio e informal em casa de colega paraense. A tarde fluiu sem pressa diante das cadeiras e bancos do quintal sombreado. Todos foram bastante acolhedores. O frango no tucupi, a caranguejada e o tacacá abafaram. Já era noite quando me despedi apressado. É que a dona da casa conseguira ingressos gratuitos para a primeira noite do festival de música erudita de Belém no teatro da Paz.
O ônibus para o Maranhão partiu à noite, lotado. A chuva ajudou a refrescar e as frestas abertas das janelas ventilavam naturalmente. Bem mais eficiente e barato que o desnecessário ar condicionado.

Entrada no estado do Maranhão por rodovias completamente abandonadas e sem manutenção, em meio à lama, crateras e atoleiros. Veículos atravessavam ou seguiam na contramão. Caminhoneiros ameaçavam bloquear a rodovia com o intuito de sensibilizar quem quer que fosse. Verdadeira calamidade na principal via que liga o norte e o nordeste do Brasil. Era o Maranhão, estado de belezas naturais, cultura fascinante, povo acolhedor, mas de situação social catastrófica. Aos trancos e barrancos o ônibus avançava naquela buraqueira. Ao amanhecer a cidade de Pinheiro e logo micro-ônibus com destino a São Luís. A balsa, pela baía de São Marcos, veio salvar dos intermináveis solavancos das estradas. Mas o mar não estava nada calmo e a balsa balançou bastante.
Saí para circular pelas ladeiras e becos da Praia Grande. Impossível não se render ao charme da noite no centro histórico de São Luís. Iluminação amarelada, becos, ladeiras, casarões com azulejos, os simpáticos bares, a cantora ao violão. A noite apenas começava.
Pela manhã caminhei despretensiosamente pelas ruas e becos do centro histórico. Entrei nas igrejas e depois me sentei sob a sombra no largo do Desterro, simpático, vazio, calmo. E combinava como o que eu estava lendo, justamente o livro Largo do Desterro, de Josué Montello. Não queria mais nada além de contemplar os arredores. Independente do estado de conservação das casas e sobrados, ou da existência de algumas construções descaracterizadas e modernas, essa região da cidade apresentava conjunto arquitetônico extenso e impressionante. Num dos sobrados restaurados devorei torta de camarão, arroz e cuxá.
Logo cedo tomei o micro-ônibus com destino a São José do Ribamar, no extremo nordeste da ilha. O percurso cortou bairros pobres de São Luís e trechos com mata nativa. O centro da cidadezinha projetava-se no mar, tendo a praia de um lado e trapiches do outro. Na ponta e final da avenida principal, no alto da colina, encontrava-se a estátua de São José do Ribamar, com gruta abaixo tomada de imagens religiosas. O sol parecia querer rachar a minha cabeça. Caminhei pelo ancoradouro, com o mercado de peixes, ruas adjacentes pobres e sujas. A praia, do outro lado, conquistava pela simpatia e pequena extensão. Mais adiante havia o manguezal evoluindo para o rio estreito, com casinhas nas margens. A maré secava rapidamente e facilitava o acesso pela areia e lodo. Subi em restaurante da parte alta da cidade, com bela vista do mar e do manguezal.
Assisti em São Luís à apresentação solo do violinista cearense Nonato Luiz, que exibiu repertório com composições eruditas próprias, mais homenagens tocantes a Luis Gonzaga e Humberto Teixeira. Durante a interpretação de Bela Mocidade, antigo tema do boi de Axixá, a plateia, emocionada, o acompanhou cantarolando, bem baixinho. E depois apreciei a tiquira, aguardente regional de coloração lilás, feita de mandioca brava. Tive que repetir a dose para confirmar a qualidade.

Ônibus com destino à cidade de Raposa, no noroeste da ilha. No caminho, o real perfil da moderna São Luís. Mansões e condomínios fechados em Olho D’água e Araçagi, cercados de miséria por todos os lados. Favelas e mais favelas, casas rodeadas de lixo e esgoto a céu aberto. Crianças obrigadas a se deslocar em ônibus lotados por quase trinta quilômetros até a unidade escolar mais próxima. E ainda havia a devastação da vegetação nativa. Em Raposa o que predominava era a miséria das palafitas e favelas sobre antigas áreas de manguezais. Muito lixo, ratos, urubus, nada de saneamento básico. Crianças perambulavam pelas ruas e becos sem calçamento e pediam moedas aos passantes. Meninas novas se prostituíam nas ruas e em bares próximos ao mercado de peixe. Apesar da miséria gritante, Raposa ainda guardava muito verde, manguezais e a praia com os diques de proteção contra o avanço do mar. A economia era puxada pela pesca. Grandes bancadas secavam os peixes ao sol antes da comercialização.
De volta a São Luís, me sentei no banco da praça central, ao lado da catedral. Trabalhadores iam e vinham de todas as direções. Desocupados ofereciam câmbio de moedas estrangeiras. Meninas menores de idade ofereciam os corpos. Um homem de meia idade abordou três delas, conversaram não sei o quê e partiram de carro para não sei onde.
Os nomes de José Sarney e de outros entes queridos da família batizavam ruas, avenidas, pontes, praças, escolas, hospitais, prédios públicos, na capital e interior do Maranhão.
Apesar de urbanizada, a praia do Calhau era limpa, tranquila, servida de quiosques. Mas carecia de beleza. A areia era dura, a cor acinzentada do mar não empolgava. A fila de enormes navios de carga, pouco antes da linha do horizonte, prontos para levarem os recursos minerais brasileiros embora, não agradava. Valia pelo sossego e privacidade, com pouca gente no sábado ensolarado.
O ônibus partiu rumo à viagem de cinco horas até Barreirinhas. A paisagem evoluiu de campos vazios para areais, babaçuais, buritizais, cursos de águas escuras e límpidas. Nos arredores de Morros, o rio caudaloso corria entre pedras, abastecido por muitas nascentes. No trajeto também havia muita miséria, abandono, ausência do poder público. Famílias inteiras se amontoavam em barracos de taipa, com cobertura de palha de buriti, chão de barro liso e inexistência de móveis. Depósitos de seres humanos, sem qualquer tipo de saneamento básico ou água encanada. Eram negros na maioria, com rostos sofridos, completamente desamparados na luta diária pela sobrevivência.

Em Barreirinhas almocei em restaurante na beira do rio Preguiças, lento e caudaloso, a referência marcante defronte à cidade.
 Antes da meia noite não havia mais alma viva pelas ruas ou praças. Os ambulantes recolheram as barracas, inclusive aquela onde o simpático e rústico maranhense me preparava caipirinhas cheias de gelo. Um silêncio gostoso cobria tudo. E o sono bateu em cheio.
Embarque cedo em caminhonete com tração nas quatro rodas rumo aos Lençóis Maranhenses e que cruzou o rio Preguiças de balsa. Após percorrer areais com raríssimas casas e moradores, já dentro dos limites do parque nacional, atingimos o início das grandes dunas. Caminhamos dunas acima. O público consistia, na maioria, de turistas convencionais, casais, idosos ou quase. Além do motorista, um guia nos acompanhava. Boa gente, mas quase não falava ou quase nada sabia responder. Visitamos a lagoa Azul, lagoa do Peixe e outras menores, com direito a relaxantes paradas para banhos refrescantes ou simplesmente contemplar as dunas sem fim. As águas eram invariavelmente cristalinas, mornas, com pequenos peixes. A impressão do extenso deserto fascinava. Grupos se formavam e aconteciam bons papos. A maioria dos turistas logo se cansava, parava, sentava e não queria ver mais nada. Fiz amizade com um carioca e dois aposentados paulistas bons de papo.
De volta a Barreirinhas, marcamos almoço tardio no restaurante na beira do rio. Optamos pela galinha caipira ao molho pardo. O garçom nos alertou que o prato demoraria cerca de duas horas, pois requeria matar a galinha na hora. Ninguém tinha pressa. A tarde corria solta e vagarosamente como as águas do rio Preguiças. Encomendamos aperitivos e mais bebidas. Logo em seguida ouvimos a gritaria no quintal ao lado do restaurante. Lá estavam o garçom e duas cozinheiras, às gargalhadas, correndo em desespero atrás das galinhas. O garçom era o que mais tentava e menos conseguia chegar perto. Escolheram a galinha branca. Trinta minutos depois, uma das cozinheiras conseguir pegar a fugitiva pela asa. E, após quase duas horas de espera, entre goles, finalmente foi servida. Atacamos aquela delícia feito animais.

Fiquei com a turma circulando pela orla. Paramos em uma das barracas para nos refrescar e jogar conversa fora até o início da madrugada. As barreirinhenses, rústicas e charmosas, ainda que muito jovens, circulavam com amigas, com os namorados. Mais uma noite agradável na beira do rio, com temperatura amena, sob o céu estrelado.
Na volta ao hotel, o carioca não aceitou minha sugestão de cortarmos caminho pelos becos. Alegou que seria perigoso e que poderíamos ser assaltados ou assassinados por traficantes que dominavam o local. Deve ter esquecido que estávamos em pacata cidadezinha do interior do Maranhão e não em capital ou grande cidade. Não entendeu e ainda afirmou que me ensinaria a sobreviver nos dias de hoje. Não conseguia relaxar, coitado.
Pela manhã, verifiquei que o barco de linha, que subia e descia o rio Preguiças regularmente, estava quase de partida. O comandante me garantiu que o barco retornaria ainda naquela noite. Eu e o carioca embarcamos. A tranquila viagem, de cerca de três horas de duração, cruzou belas paisagens, com destaque para as grandes dunas entre Vassouras e Caburé, na margem direita do rio.
Desembarcamos nas areias de Caburé, básica, calma e ventilada pela brisa constante. Após a partida das voadeiras vindas para os passeios de um dia, o silêncio imperou em Caburé. O pôr-do-sol foi belíssimo, colorindo o horizonte, antes do luar se impor e deixar o reflexo prateado nas águas do rio. Embarcamos de volta a Barreirinhas no meio da noite, mortos de sono e cansaço.
Despertei cedo, acertei logo a caminhonete para garantir lugar. A viagem de cinco horas até Tutóia foi por areais improvisados em estrada. A carroceria batia e balançava muito. Éramos obrigados a segurar onde desse para não despencarmos no chão. Mas o tempo passou rápido. Havia passageiros simpáticos, sobretudo uma professora aposentada que me descreveu o amor pela educação e pelos alunos, os golpes que sofreu do sistema de ensino que pouco se importava pela qualidade do trabalho e também sobre os sonhos de recomeçar a ensinar. A paisagem, rústica e deslumbrante, exibia dunas, buritizais, lagoas com aguapés, rios de águas cristalinas, casas de taipa e cobertas de palha, pequenas plantações, carnaubais. Os moradores, poucos e miseráveis, eram acolhedores e sorridentes.
Em uma parada num bar em meio ao areal, apareceu um caboclo me oferecendo mercadoria guardada em um saco plástico. Pelo formato e cores, parecia um réptil. Já de volta à carroceria da caminhonete, comentei o fato com o carioca que, com toda a esperteza e experiência inigualáveis, garantiu que a tal mercadoria era cocaína, pois era assim que os traficantes se comportavam.
Na chegada a Tutóia, a caminhonete parou na estação rodoviária. O carioca afobado desembarcou para pegar ônibus a Parnaíba, apesar de eu aconselhá-lo à tranquilidade e belezas da viagem de barco no dia seguinte pelo Delta do Parnaíba. O coitado nem parecia que estava passeando. Enxergava perigo em tudo, riscos de assaltos, do barco afundar, da caminhonete capotar, de qualquer administração pública se corromper, de se adoentar, de não haver assistência médica adequada.
À noite, nas imediações das escolas de Tutóia, as calçadas fervilhavam de estudantes e colegas. Passeavam, namoravam, conversavam, observavam, assistiam musicais pelo telão, aproveitavam a noite estrelada e fresca. Animação e diversão não faltavam. Tomei sorvete de cupuaçu. O cansaço se fez presente e caí no sono.
continua...

4 comentários:

  1. O Dia que tiver "LOUCO" como foi "DANTE" !!!..., Farei uma "MUCHILARIA" que já foi meu FORTE nas Décadas de 1970 !!!... Rsrsrsrsrsrsrss

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  2. Oi Pedro, obrigado pelo comentário. Ele é muito importante para mim.
    Devemos ser de idades parecidas, pois também fui mochileiro nos anos de 1970. Só que continuei nos anos de 1980, 1990, 2000, agora anos de 2010 rssss.
    Mudei um pouco, claro, mas continuo curioso e interessado em paisagens, pessoas, culturas...
    Adoro o diferente!
    Fique à vontade de comentar sempre.
    Abraços!

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  3. Gosto muito da maneira como você coloca o nosso país, revela seu potencial entusiasticamente, como também relata nossos problemas com uma certa dose de indignação. Só de ler, fico indignada com o descaso de nossos dirigentes, administradores, povo e até comigo, porque sou consciente do que acontece ao meu redor e se argumento, parece que não tem retorno. Impotente é assim que me sinto. Apesar de todos os problemas que li, tu mostra um Brasil que vale a pena conhecer. Brasil enraizado em uma cultura riquíssima, habitado por uma miscigenação incrível, matizado de cores mil...obrigada por me mostrar as faces do nosso amado país. Abraços. Continuo.

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  4. Oi Ivete, obrigado por comentar.
    Não podemos nos restringir às atividades dos filósofos, que vieram ao mundo para interpretá-lo. Temos que ir além e também transformá-lo.
    Se uma parte dos que veem a situação e as saídas da mesma maneira se unirem e partirem para a ação, creio que muitos outros aderirão e farão a diferença.
    Impotência deveria ser nosso último sentimento.
    Unidos somos fortes. Vamos deixar a inércia de lado e lutarmos.
    Nosso país e nosso povo merece muito mais!
    Abraços!

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