sexta-feira, 29 de outubro de 2010

do Acre à Bahia (parte 7/7)

...continuação
Tomei ônibus até Macaúbas e em seguida lotação até Ibipitanga. Mais estradas baianas em péssimas condições. As autoridades regionais alegavam falta de verbas para restaurá-las. Não explicavam, no entanto, o festival de dinheiro para erguer monumentos e prédios públicos, batizando-os com nomes da família de Antonio Carlos Magalhães, sobretudo do filhinho Luís Eduardo Magalhães, que provocou até troca de nome de uma cidade do interior.
Um mulato raquítico vestindo roupa social distribuía santinhos aos demais passageiros, convidando-os para cursos bíblicos “gratuitos” depois dos quais seria fornecido um “certificado”. Enfatizava que os cursos não possuíam ligação com religião ou igreja. Os ingênuos ouviam, se deixavam, ou fingiam deixar, levar pela propaganda. A maioria desconfiava e enchia de perguntas que o indivíduo não conseguia responder.
Uma mulher ainda jovem, acompanhada do filho, embarcou com dinheiro insuficiente para o valor integral da passagem. A discussão parecia não ter fim e os funcionários da empresa ameaçavam desembarcá-la. Acabaram por pedir contribuições aos demais passageiros até completar o valor necessário. Ela agradeceu e se calou pelo restante da viagem.
O ônibus cruzou o semiárido do sudoeste baiano, onde predominava vegetação rala, cortada por pequenas roças de palma, milho, mandioca.  Extensa faixa serrana se elevava a oeste da estrada, com encostas pedregosas e arbustos esparsos. As cidades de Oliveira dos Brejinhos, Boquira e Macaúbas erguiam-se ao pé da serra. Algumas das ruas seguiam em direção aos paredões e subiam parte do morro. O ônibus entrou em Macaúbas no meio da tarde. Consegui pegar a última lotação do dia. No meio do percurso, entrou em estrada local, não pavimentada, a fim de deixar uma senhora na zona rural. Ela convidou e todos desembarcaram para usar o banheiro, tomar água e café.
Cheguei em Ibipitanga no final da tarde e a lotação me deixou em frente a hotel simples, ventilado e barato, com quarto básico e banheiro minúsculo. Tomei banho tentando me equilibrar para não cair na privada, situada exatamente embaixo do chuveiro.
A pequena Ibipitanga ocupava o centro da planície levemente inclinada para o vale do rio Paramirim, guardando pracinhas, a pequena igreja, árvores mutiladas geometricamente, moradores reservados e acolhedores.
Entrei antes do amanhecer na lotação para percorrer os trinta quilômetros de buracos em viagem de quase uma hora até Macaúbas. Fazia frio, agravado pelo vento cortante e seco. Muitos usavam blusas grossas e se encolhiam nos bancos da lotação, mesmo com as janelas fechadas. No caminho surgiam povoados chamados de Almoço, Açude, Escritório, Leite. Macaúbas atraía pelas ruas estreitas, algumas sinuosas, ladeiras com calçamento de pedra, construções do início do século XX, mas, sobretudo, pelos paredões da serra ao lado. O alto das ladeiras reservava visão privilegiada do conjunto, pracinhas, da serra imponente. Era dia de feira, onde tudo se vendia, comprava, comia, bebia. Dezenas de ônibus, caminhões e caminhonetes traziam os feirantes e fregueses dos povoados vizinhos. Andei, subi e desci bastante pelas ruas e becos da cidade. Observei o burburinho gostoso da feira que pulsava vida por todos os lados.
Durante a madrugada e boa parte da manhã do domingo, o vizinho do quarto ao lado do hotel em Ibipitanga, um doutor não-sei-o-quê, manteve o televisor em alto volume. O lacaio trouxe-lhe café da manhã no quarto, sempre se dirigindo ao dito cujo como doutor isso, doutor aquilo. O tal permaneceu no quarto durante todo o final de semana sem botar a cara para fora.
À noite Ibipitanga se encontrou na praça, após a missa realizada ao ar livre devido ao reduzido tamanho da igreja. O espaço da praça ocupava-se democraticamente por diversas idades e classes sociais. Os frequentadores circulavam livremente, sem a necessidade estúpida de consumir, sem se verem obrigados a andar diante de vitrines recheadas de supérfluos. O frio castigava e apelei para as roupas mais quentes guardadas no fundo da mochila.
Dia de feira semanal e a cidade fervia com a invasão dos habitantes dos povoados vizinhos, a fim de vender, comprar, consumir, passear, se divertir. Carnes expostas ao sol e às moscas, frutas, rapaduras, roupas, acessórios, itens diversos. Rostos sofridos, mas esperançosos, expressões curiosas ou ansiosas, caboclinhas singelas. Os bares enchiam e alguns matutos se embriagavam. As lojas atiçavam os recém-chegados. O comércio se movimentava e a cidade agradecia. Por ser dia de feira, as noites das segundas-feiras eram animadíssimas na praça e na danceteria ao lado.
Encontrei caminho promissor no fim da rua em direção à zona rural de Ibipitanga. As cercas em ambos os lados indicava que tudo ali estava demarcado, com donos, legítimos ou não. A temperatura amena e o sol indeciso ajudavam no prazer de avançar caatinga adentro. À esquerda, umbuzeiros, juazeiros, muito capim e a serra alongada ao fundo do horizonte. À direita, apenas trecho mais pedregoso e coberto de vegetação ressecada. Bodes, cabras, jumentos, gado, porcos esparsos perambulavam dentro dos cercados ou até no leito do caminho. Pássaros de diversas espécies cantavam e voavam baixo. Duas corujas, provavelmente na guarda dos ninhos, permitiram que eu me aproximasse. “Sofrês” alaranjados e de cabeças pretas, além de outros pássaros também coloridos e de cantos marcantes, se sobressaíam no tom cinza esverdeado da vegetação. Mais ao final do caminho, onde o açude era rodeado de poucas casas e muitas pedras, uma cobra verde descansava por entre os xiquexiques e arbustos secos. Urubus estrategicamente estacionados no alto das pedras espreitavam coisas mortas. Em meio a pouca gente, casas fechadas ou abandonadas, eu reencontrei o casal conhecido da noite anterior. Eles me ofereceram café acompanhado de avoadores, espécie de biscoito de polvilho. Roças de milho, feijão, capim e palma espalhavam-se ao redor da casa.
Quando cheguei para o almoço e descrevi o passeio realizado, todos se assustaram com a enorme distância percorrida, imaginando a minha exaustão após tanto esforço físico despendido. Somente a descrição da caminhada deixou os baianos com sono e preguiça.
A maioria das pessoas que eu conhecera durante a viagem nutria curiosidade pelas leituras. Embeveciam os olhares quando folheavam livros. Diante da ausência de livrarias, sebos ou bibliotecas acessíveis, liam o que aparecia pela frente, ainda que pouco e lentamente. O fundamentalismo e a indústria religiosa se aproveitavam da situação, oferecendo livros “educativos” a quem demonstrasse o mínimo interesse, na única intenção de convertê-los. E o leitor, sem opções, lia mesmo não se interessando pelos temas doutrinários. Achavam o texto fácil e agradável, considerando as frases bonitas, os pensamentos tocantes. A combinação de alienação e conformismo da maioria, tão valiosa à classe dominante, estava garantida. Eu sempre presenteava alguém durante as viagens assim que terminava um dos tantos livros de literatura que carregava na mochila.
Comprei passagem até Caetité. Após a cidade de Tanque Novo o ônibus lotou. Depois, a charmosa vila de Caldeiras. Desembarquei, junto com outro passageiro, no trevo da rodovia BR-430. Largamos as bagagens no chão e ficamos à espera de transportes para Bom Jesus da Lapa.
Estávamos no alto da serra, ventava demais. Mesmo sob o sol do meio-dia fazia frio. Não passava ônibus, lotação ou qualquer coisa em direção ao nosso destino. Beliscamos alguma coisa, conversamos, nos calamos, conversamos, nos calamos. Observamos o movimento fraco de carros e caminhões. Ficamos por ali mais de duas horas e meia, parados, sob o sol, sofrendo com o vento e o frio, famintos. Eis que surgiu a lotação, entupida de bagagens mal espalhadas pelo piso e bancos. Esmagados e para lá de desconfortáveis, embarcamos rumo a Bom Jesus da Lapa. E com sofrimento, como legítimos romeiros.
A estrada estava péssima na Bahia de Antonio Carlos Magalhães e companhia. Em cena comum nos interiores miseráveis do Brasil, crianças pediam esmolas em troca de taparem com terra os buracos daquilo que um dia foi rodovia. Finalmente, nove horas após a partida de Ibipitanga, eu entrava em Bom Jesus da Lapa, a “capital baiana da fé”, conforme anunciava o grande cartaz na entrada da cidade.
O corpo pedia o merecido descanso. Os pulmões chiavam da poeira inalada dos restos de estrada. Jantei cedo em restaurante de frente para a praça movimentada. Os negros e mulatos abundavam. A atmosfera musical predominava. A influência soteropolitana era evidente, em prejuízo do jeito nordestino do interior.
O rio São Francisco, que já margeara a cidade, se afastara e corria a centenas de metros das ruas da cidade, formando extensa área de várzea fértil, mato e areia. Ao longe, na beira da água, estendiam-se barracas frequentadas pelos eventuais banhistas.
Bom Jesus da Lapa, com comércio intenso e enorme rede hoteleira, sobrevive graças à imagem religiosa, atraindo romeiros, turistas e visitantes em geral.
O complexo do Morro da Lapa, maciço calcário de coloração cinza escura, compõe-se de conjunto de grutas, igrejas, salas de milagres e oferendas, imagens, oratórios, interligados por labirintos de caminhos dentro da rocha. Estalactites e estalagmites ornamentam os salões. Mas a natureza das grutas se descaracterizara intensamente. A iluminação artificial garante a segurança na circulação. Os horários dos portões disciplinavam o acesso.
Logo na entrada da primeira gruta, o grande altar coberto com centenas de velas atraía os visitantes para oração, os olhares contemplativos, ou o simples acender de mais velas. Os diversos caminhos internos terminavam em salões com imagens, onde os devotos rezavam, pediam, agradeciam. Dois amplos salões reservados para missas em horários pré-determinados estavam mobiliados com altares e várias fileiras de bancos para os fiéis. As salas dos milagres impressionaram pelas fotos, frases, cartas, objetos pessoais, reproduções de membros do corpo humano em madeira ou plástico, oferendas. Formava conjunto impressionante para onde muitos se dirigiam e observavam com os olhos úmidos. Das estalactites brotavam pequenos fios de água, sobre os quais os fiéis se apoiavam, acariciavam, choravam, rezavam, imploravam, à espera de proteção e milagres. Grupos estacionavam nos altares das grutas e, mesmo na ausência do padre organizador, rezavam e cantavam músicas religiosas. Alguns se arrastavam nos joelhos na ida até o altar.
Milhares de pessoas dos vários cantos do Brasil afluíam para as grutas. Mas, longe de reservarem atmosfera entristecida, os visitantes também sorriam e fotografavam. Vendedores de fotos, imagens e lembranças, muitos pedintes, geralmente idosos amontoavam-se nas entradas do Morro. Guias mirins ofereciam-se com insistência aos visitantes na subida pelas pedras ao Alto do Cruzeiro, no topo do Morro da Lapa, de onde se avistava a cidade, a estrada de acesso, o rio São Francisco, a extensa, moderna e horrível ponte sobre as águas.
As ruas do centro da cidade chegavam aos pés da parede rochosa. Mas, à medida que se afastava do centro, mais próximo à antiga margem do rio, despontavam os bairros mais pobres, agrupamentos de casas miseráveis, ruas de terra, lixo, muita sujeira a céu aberto.
A ideia de estender a viagem aos Gerais da Bahia perdia força. Deixaria para outra oportunidade. Crescia a vontade de encerrar a viagem e voltar para casa. Bastava leve empurrão, que veio logo em seguida.
O proprietário do hotel pediu a liberação do quarto até a manhã do outro dia, quando um grupo de romeiros lotaria todos os quartos. Caminhei até a estação rodoviária e adquiri a passagem para São Paulo para o dia seguinte.
A praça central de Bom Jesus da Lapa se animou à noite. Os bares e restaurantes lotaram. Quase não havia lugar nas mesas espalhadas pelas calçadas. O vento fresco batia forte. Alguns se agasalhavam, mas ninguém arredava o pé. Mais gente chegava e ocupava as últimas vagas. Nas ruas estreitas que dão acesso ao Santuário, grupos se sentavam nas calçadas, bebiam, conversavam, observavam o movimento.
O ônibus da empresa Gontijo entrou para embarque e desembarque em todas as cidades baianas próximas à estrada. No trecho do norte mineiro da rodovia o destaque ficou por conta dos altos espigões de rocha, serras altas e imponentes, com pouca vegetação e grandes paredões de rocha exposta.
       Madrugada muito fria, sem falar na desrespeitosa e demorada troca de ônibus em Belo Horizonte.
O ônibus entrou no terminal rodoviário do Tietê em São Paulo naquele mês de julho. A marginal Tietê estava com tráfego intenso, mas sem congestionamento.
           E assim se encerrava a viagem de mais de três meses, do Acre à Bahia.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

do Acre à Bahia (parte 6/7)

...continuação
Outra manhã cinzenta e chuvosa. Peguei ônibus ao litoral sul do estado do Rio Grande do Norte. Mesmo com o tempo cinzento e algumas pancadas de chuva, valeu sair, respirar ar puro e observar as inúmeras praias. Retornei no mesmo micro-ônibus até a estação rodoviária, onde comprei minha passagem de fuga dali.
Muitos pedintes, sobretudo crianças, perambulavam pelos corredores da estação rodoviária de Natal. O ônibus oferecia um monte de perfumarias que encareceram a passagem, como lanche ressecado, cobertores e travesseiros, suporte para os pés que me impediam a liberdade de movimento. Os bancos, amplos e confortáveis, não garantiram a tranquilidade da noite de sono. O ar condicionado, estupidamente gelado e com o jato não regulável voltado diretamente para o meu rosto, causavam enorme desconforto e irritação. Ônibus convencional, sem ar condicionado, mas com ventilação natural, seria muito mais barato e confortável.
Cheguei no terminal rodoviário de Maceió antes de nascer o sol. Telefonei para a amiga de tantos anos na cidade de União dos Palmares, para onde fui de micro-ônibus, desta vez um básico, para o meu alívio.
Extensos canaviais predominavam na paisagem da zona da mata alagoana, intercalados de pequenas roças de alimentos. Mais acampamentos de trabalhadores rurais sem terra, em barracos cobertos de plástico preto, apontavam para a urgência da reforma agrária. Duas horas depois o micro estacionou na rodoviária de União dos Palmares.

Todos da família me receberam entusiasticamente. Conversei, vi fotos e mais fotos, saciei a curiosidade geral. Almocei em mesa sempre cheia de gente animada e comida saborosa.
Mas fiquei em hotel básico no centro da cidade. Tentei cochilar a fim de recuperar parte da noite perdida.
Lanchei e jantei novamente na casa deles. Foram mais deliciosas conversas até tarde da noite. A chuva fina não conseguia apagar as dezenas de fogueiras, acesas tradicionalmente às 18h naquela véspera do feriado de São Pedro. Na véspera de São João a cidade se cobrira de fogueiras, rodeadas de pessoas comendo milho assado, canjica, ao som de músicas de quadrilha, baião, xote e xaxado.
União dos Palmares custou a acordar na manhã chuvosa do feriado de São Pedro. O irmão mais novo da dona da casa apareceu e nos convidou para almoçar em churrascaria na beira da estrada para Garanhuns. A rodovia sinuosa cortava a região serrana do norte de Alagoas, entre canaviais, laranjais, plantações de mandioca, banana e outros alimentos em encostas íngremes, verdes e férteis. O sol tornava a paisagem ainda mais colorida e brilhante. A churrascaria pertencia a um pequeno agricultor local que ganhara milhões na loteria anos antes.
A temperatura caiu levemente à noite e bateu vento fresco acompanhado de fracas pancadas de chuva. A família amiga me tratava com extremo carinho.
Primeiro dia do mês, feira semanal em União dos Palmares. Filas quilométricas nos terminais de autoatendimento do banco. Trabalhadores rurais, aposentados e pensionistas lotavam o saguão com rostos sofridos e roupas suadas.
A chuva começou no meio da manhã e não parou mais. Todos estavam à minha espera para o almoço de despedida. A dona da casa me presenteou com o delicioso licor de jenipapo, costume tradicional durante as festas juninas.
Ainda chovia muito quando eu e a amiga entramos no carro para pegar a estrada vazia. Uma hora depois estávamos em Maceió, minha velha conhecida de tantas viagens passadas. Me hospedei na casa da tia com quem ela morava há muito tempo.
E a chuva não parava. Mesmo assim fomos a um barzinho baiano, pertinho da Jatiúca, com pouca gente nas mesas. Aproveitamos para refletir e descer a lenha na indústria da religião, para as quais as tias dela foram aliciadas. A amiga estava desconsolada. E se sentia sufocada com o cerco do fundamentalismo das empresas evangélicas.
Amanheceu estiado depois de noite chuvosa. As muriçocas infernais foram implacáveis e picaram mesmo por cima do lençol. A tia evangélica insistiu para que eu convencesse o filho menor de idade a desistir do futebol e apenas continuar os estudos. Recusei delicadamente aquela batata quente. Ainda mais que o garoto resistia bravamente e não se deixava levar pelo fanatismo da mãe.
O desejo de seguir viagem e explorar novas paisagens crescia após aquela fase social da viagem. E as chuvas na região, típicas nessa época do ano, não colaboravam em nada. A comida servida na casa da tia, preparada pela empregada também fundamentalista, não dava para engolir. Nem o suco com odor de detergente. A tia não substituía a empregada porque ambas frequentavam o mesmo templo empresarial. Templo é dinheiro! Tudo pelo corporativismo da indústria religiosa. Então comíamos fora. Saboreamos deliciosa moqueca de sururu, polvo, peixe e camarão, caipirinhas, suco de mangaba, doce de goiaba.

E em plena segunda-feira, meu último dia em Maceió, amanheceu com céu azul e sol brilhante. Circulamos pelas praias de Jatiúca e Ponta Verde. Além de aproveitarmos o dia ensolarado, evitaríamos o grude na casa da tia. As praias não lotavam, as águas azuis esverdeadas do mar se sobressaíam na paisagem. E as ondas tornavam-se mais agitadas e altas à medida que seguíamos no rumo da praia da Cruz das Almas.
Embarquei em ônibus convencional, sem o supérfluo ar condicionado, para alívio da maioria dos passageiros. Após passar por Feira de Santana, a rodovia escancarou a imagem da Bahia ausente dos cartões postais. Trânsito infernal, buracos e mais buracos, poluição sonora e do ar. Miséria, abandono e falta de infraestrutura social nos vilarejos nas margens da estrada, habitados principalmente por negros. Os moradores improvisavam precárias fogueiras no acostamento, assavam sabugos de milho verde e tentavam vendê-los em meios aos veículos leves e pesados. Após a parada para o almoço em Itaberaba, onde estacionou outro ônibus com destino a Lençóis cheio de estrangeiros, a paisagem de caatinga predominou pelo restante do trajeto. Os morros do Pai Inácio e do Camelo, integrantes da região da Chapada Diamantina, se exibiram imponentes, bem próximos à estrada, pouco antes da chegada em Seabra. 
A partir desse ponto o ônibus penetrou no miolo do sertão oeste baiano, paupérrimo, com vegetação e riachos ressecados, serras pedregosas cobertas de mato ralo, muita desolação. Entre as localidades de Lagoa do Dionísio e Queimada Nova, desceu a serra da Mangabeira, áspera e cheia de pedras, através de estrada íngreme, sinuosa e estreita. Na parte mais baixa do relevo, no início da grande planície, a rodovia virou piada de mau gosto, entre grandes crateras, restos de asfalto, muita poeira. A velocidade dos veículos não ultrapassava vinte quilômetros por hora. Alguns optavam pela estrada paralela à rodovia, assumidamente caminho de areia e terra, porém com leito mais regular. Como na maioria dos casos das rodovias na Bahia, a situação da BR-242, que liga nada menos que Salvador à Brasília e ao centro oeste do país, era uma calamidade. Mas isso não aparecia nos folhetos turísticos do estado comandado com mãos de ferro pela camarilha do DEM.

Os passageiros se alternavam durante o percurso. Embarcavam e desembarcavam nas vilas e cidadezinhas, com ou sem bagagem. Sorriam e cumprimentavam. Queriam sempre conversar e falar sobre a vida. Eu estava no sertão, longe do turismo e dos comportamentos previsíveis, mas ao lado de povo maltratado, sofrido, simpático, de bom coração.
Em Ibotirama optei por hotel simples, novo e barato, próximo à rodovia. Jantei em restaurante familiar, pequeno, com comida farta e saborosa. Do lado de fora, um carro qualquer detonava o som do porta-malas para toda a cidade ouvir.
Amanheceu dia ensolarado e brilhante, típico dia outonal. Fresco nas sombras, pela manhã e noite, mas quente e seco sob o sol. Ibotirama apresentava ruas estreitas com casas baixas, avenidas largas com sobrados, árvores mutiladas geometricamente, reduzindo as sombras e estragando a naturalidade do verde. Caminhei pela rua principal, cruzei o centro comercial e, mais à frente, atingi a orla do rio São Francisco. A murada alta, calçadão estreito, bares, restaurantes e, mais atrás, o palco voltado para apresentações culturais. O Velho Chico impressionava pela imponência. Barcos pequenos a motor e canoas a remo atracavam nos barrancos. Os moradores circulavam, a pé ou de bicicleta, pela orla arborizada. Paravam sob a sombra e observavam, sem pressa, as águas caudalosas do rio, o movimento eventual de peixes, os pássaros na procura de comida na superfície. Pescadores aproximavam-se da beira e tentavam a sorte com anzol ou tarrafa. Lavadeiras em grupos traziam baldes de roupa, estendendo-as depois para secar nas pedras. Amigos conversavam sob as sombras, namorados aproveitavam a calmaria.

A mata ciliar original na maior parte do curso do rio São Francisco tinha sido devastada e o solo fora exposto à chuva e ao sol. O volume, profundidade e qualidade das águas sofriam com a situação, causando assoreamento, poluição, diminuição e até extinção dos peixes, além de comprometer a qualidade de vida das populações ribeirinhas. Também não havia mais linhas regulares de barcos de passageiros, vapores, lanchas. O assoreamento criminoso do rio reduziu drasticamente a profundidade das águas. E as rodovias esburacadas que correm paralelamente ao rio decretaram o fim daquele meio de transporte, tradicional, simpático e eficiente. A necessidade da revitalização do Velho Chico estava há anos na ordem do dia.
O fundamentalismo e a indústria a religião continuavam a fazer estragos. O cada vez mais retrógrado vestuário das fanáticas piorava em Ibotirama com as roupas mais fechadas, mais conservadoras, mais ridículas. Dava pena de ver as crianças coagidas a vestirem coisas que as transformavam em idiotas. E aterrissou na cidade um grupo de cristãos fanáticos, ainda mais fervorosos, ocupando imensas caminhonetes. As mulheres vestiam roupas medievais, usavam corte de cabelo medieval, cobriam a cabeça com toucas medievais. Pareciam vindas da época da inquisição. Os homens, de ar carrancudo, vestiam-se normalmente, fazendo jus a essas seitas extremamente machistas.
Não havia terminal rodoviário em Ibotirama. O movimento acontecia nas lojas das empresas de ônibus, situadas em endereços diferentes. Muita gente e muita confusão. Nada de horários afixados em local visível ou plataformas de embarque e desembarque. Os passageiros corriam aos ônibus para saber de onde vinham e para onde iam. Os funcionários da bilheteria comunicavam apenas a partir de que horas o ônibus poderia partir.
continua...

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

do Acre à Bahia (parte 5/7)

...continuação
Na manhã seguinte, comprei bananas e embarquei no barco rumo à viagem de oito horas até a cidade piauiense Parnaíba, pelo Delta, ao lado de viajantes e moradores locais. Havia redes já armadas para os turistas, apenas para os turistas. Entre eles, dois gaúchos e quatro cariocas. A família de seis pessoas residentes em Carnaubeiras, cidadezinha situada no meio do Delta, voltava com compras para casa. Presenteei-lhes com o livro Verão no Aquário, da Lygia Fagundes Telles, após uma delas mencionar que adorava ler. Passaram a folheá-lo com carinho como se tocassem em uma joia rara e frágil. Liam aleatoriamente algumas páginas. Os olhares brilhavam de emoção.
Somente após a partida daquela família prestei atenção nos turistas das outras redes. E na paisagem pela qual percorrera cinco anos antes. O visual dos extensos manguezais permanecia encantador. Árvores com raízes imitando tentáculos sobre a água, ramos com imensas folhas, águas límpidas e o brilho do sol que valorizava tudo. Catadores de caranguejo, cobertos de lama escura, tiravam o sustento diário.
Em Tatus, enquanto aguardávamos a lotação gratuita e encomendada pelo comandante do barco, nós observávamos a chegada de dezenas de barcos entupidos de caranguejo. E de várias carretas estacionadas, com placas de Fortaleza, que os transportariam para serem vendidos no Ceará a preço de ouro. Os catadores recebiam uma miséria dos compradores. Em Fortaleza seriam vendidos em bares e restaurantes vinte vezes mais caro. E os que mais trabalhavam, em péssimas condições, se afundando nos lamaçais dos mangues, eram os que mais sofriam e os menos recompensados por isso.
A lotação nos levou até o centro de Parnaíba, já no estado do Piauí, onde desembarcamos no começo da noite. Eu e os gaúchos saímos para jantar sem tomar banho.

Após o bom café da manhã, fomos à praia da Pedra do Sal, situada na ilha grande de Santa Isabel. O ônibus urbano cruzou extensas áreas de carnaubais, lagoas, riachos, casas esparsas. Eram duas praias quase vazias, separadas por uma ponta de pedras com um farol. Do lado esquerdo, a grande baía de águas calmas. Do lado direito grande extensão de praia de tombo com mar violento. Apesar da ausência de vegetação, o ambiente seduzia pela simplicidade, despretensão e sossego.
Eu e os gaúchos voltamos ao centro da cidade e lá subimos em lotação até a praia do Coqueiro. Caminhamos pela praia com mais infraestrutura que a Pedra do Sal. Ainda assim estava calma e limpa. A ressalva era a liberação para a circulação de veículos na areia. Em local bem posicionado, bebemos, matamos a fome, apreciamos o visual. Os preços eram bem inferiores aos cobrados no Maranhão.
Percorri de moto-táxi quase toda a cidade, ampla, bem urbanizada, sem edifícios altos, com muito verde, praças e jardins, a fim de me despedir do casal gaúcho no terminal rodoviário. As calçadas existiam e estavam em boas condições. Cruzar a fronteira do Maranhão com o Piauí foi como deixar o inferno e entrar no paraíso. Pelo menos visualmente. O aspecto, higiene, habitação, urbanismo, população, preços, eram melhores no lado piauiense. O Maranhão vencia fácil na parte cultural, feminina, charme e culinária.
A vida noturna nos calçadões da avenida Beira Rio de Parnaíba concentrava o pior dos mundos. Adolescentes produzidos, celulares à mão, poses e olhares arrogantes, carros vomitando em volume ensurdecedor a barulheira dos porta-malas. Desfilavam uns para os outros. Nenhuma naturalidade. Exibição total. Lixo social e cultural. As noites de Parnaíba, porém, não se resumiam àquilo. Havia os bares charmosos da região do Porto das Barcas e no Beco da Boemia. As quadrilhas durante as festas juninas se espalhavam pelas ruas em manifestações espontâneas, despretensiosas, bonitas e populares. E caminhar à noite pelas calçadas só aumentava o charme da cidade por ruas arborizadas, limpas, vazias, fileiras de casas antigas e novas, segurança, urbanismo humano.
A região do Porto das Barcas, situada na margem direita do rio Parnaíba, era uma extensa área de armazéns, galpões e fábricas, cortada por becos calçados de pedra. Quase tudo estava abandonado, alguns reutilizados para espaços culturais, restaurantes, bares, lojas, centros comerciais. Grupos musicais ensaiavam em grandes galpões. O acabamento antigo dava charme especial ao local, ainda mais com lustres pendurados em várias paredes.

As tais bandas moderninhas de “forró”, que passavam longe do baião, xote ou xaxado, eram absolutamente iguais. No desespero de diferenciarem-se em meio à geleia geral, anunciavam o nome da banda no meio de todas as faixas. E, por lançarem discos em série e iguais, também anunciavam o número do disco, ou volume. Ficava ainda mais insuportável ouvir aqueles lixos de letra e melodia, cortadas insistentemente pelos nomes das bandas e volumes dos discos.
Dia sem compromissos, nada de programação, muita preguiça e vagabundagem. Nem à praia eu fui, mesmo em domingo ensolarado. Almocei em descontraído restaurante em frente ao rio Parnaíba, com direito a exuberantes carnaubais na margem oposta. A comida e as caipirinhas fizeram efeito e a preguiça caiu matando. Não resisti e me entreguei a sonecas no quarto da pousada.
O ônibus, confortável e frio, não saiu lotado. Esparramei-me na cadeira e apreciei o curto litoral piauiense após a cidade de Luís Correia. Eram dunas baixas, com pequenos vilarejos. Logo cruzamos a fronteira cearense em relevo levemente acidentado, com cidadezinhas simples, lajedos de pedra. O ônibus entrou no terminal rodoviário de Fortaleza antes do amanhecer. Peguei imediatamente outro ônibus para Natal. Via-se muita sujeira nas avenidas de Fortaleza, com moradores de rua e visual nada convidativo.
O ônibus engatinhava na rodovia esburacada que nem parecia pavimentada. Pouco antes da fronteira potiguar a caatinga já reinava absoluta, entre arbustos secos, retorcidos e espinhosos, mas esverdeados pelas chuvas recentes. Riachos temporários expunham a areia ressecada. Bodes e cabras circulavam, em meio a raras casas e vilarejos isolados. Lajes de pedra, blocos rochosos e serras, carentes de vegetação, se destacavam na paisagem do semiárido. Acampamentos improvisados de trabalhadores rurais sem terra espalhavam-se nas margens da rodovia. As barracas precárias cobertas de plástico preto revelavam os males causados pela indecente concentração de terra no Brasil. Enormes propriedades improdutivas se estendiam em ambos os lados da estrada. Enormes vazios.
O ônibus entrou no terminal rodoviário de Natal no meio da tarde. A colega potiguar apareceu para me pegar. Jantei carne de sol preparada pela minha anfitriã. O cansaço e o sono aumentaram. Mal podia me concentrar nos assuntos. A lua cheia brilhava forte pela janela e iluminava o quarto. Nem precisei acender a luz.
Depois de noite de sono profundo, acordei, li, cochilei, li novamente, cochilei em seguida. Acordei no início da tarde com muita preguiça.
Eu, ela e mais uma amiga saímos à noite a procura de diversão. A praia da Ponta Negra se transformara em ambiente repugnante. E me lembrei da primeira vez que a vi.

Naquele remoto ano de 1976, o ônibus urbano que trouxera eu e o colega do centro da cidade parou no meio do nada. Havia apenas a estrada de pista simples no alto do morro e a encosta caindo na praia, bem abaixo. Do alto, impressionava a beleza da praia, o mar azul e agitado, mais algumas dunas cobertas parcialmente de vegetação rasteira. Nada de construção ou habitação, no alto do morro ou nas areias da praia. Tentamos encontrar a trilha para descer, mas não havia nenhuma. Iniciamos a descida. O terreno era íngreme e a areia solta. Os pequenos lagartos, habitantes solitários do lugar, se assustaram com a nossa presença e correram desesperados para todos os lados. Tentavam fugir de um e se dirigiam ao outro lado. Assim que percebiam que também tinha gente, iniciavam o caminho inverso e assim por diante. Atingimos a praia e seguimos, sem parar, em direção ao mar para o gostoso mergulho naquelas águas para lá de convidativas. Nenhuma alma viva, com exceção dos lagartos, nos fazia companhia naquela manhã de sol, calor e céu azul. A temperatura quase morna da água refrescava do intenso calor. Cansamos de pegar “jacarés” nas ondas fortes. Ficamos horas e horas assim. Descansamos na areia, voltamos ao mar por diversas vezes. Bateu sede doida, mas não havia nada por perto, barraca, habitação. Nada. A fome não tardou também a aparecer. Já estávamos no meio da tarde e tivemos que deixar aquela beleza. Retornamos ao centro da cidade, ardidos do sol, famintos, sedentos e extremamente felizes.
A praia da Ponta Negra ocuparia, durante anos e anos, a minha mente, como uma das praias mais belas e mais gostosas que conhecera até então. Bela, deserta, selvagem.
Nunca mais a vi. Daí a emoção de retornar ao mesmo local quase trinta anos depois.
Claro que eu não a imaginaria intacta depois de tanto tempo. A indústria do turismo avançara demais nessas décadas. Mas também não esperava o tamanho choque e decepção. Eram hotéis e mais hotéis, bares, restaurantes, boates, agências de viagem, ambulantes, asfalto e concreto, poluição sonora, putas maiores e menores de idade, travestis, menores de rua, gringos, aproveitadores, golpistas, passadores e consumidores de drogas, turistas desavisados ou mal intencionados. Horror dos horrores!
Logo ao amanhecer a chuva desabou sobre a cidade. Rajadas de vento, muita água, o céu cinza claro e uniforme, nenhum sinal de melhoras. A tempestade só se aquietou no final da tarde. Mesmo assim saímos para almoçar em restaurante de comida regional. Depois fomos à casa da amiga dela, um sobrado caindo aos pedaços, onde não faltavam goteiras e infiltrações pelas paredes e teto. Havia três crianças doentes, duas delas com pneumonia, sem qualquer assistência da mãe, andando descalças e nuas debaixo da chuva. A tal amiga passava por doloroso processo de separação de um pastor de igreja empresarial. A casa e os moradores combinavam com o tempo cinzento e chuvoso.
Na volta observei parte das festas juninas de Natal, entre fogueiras nas ruas, milho assado, gritarias, bombas e fogos.

Nenhum sinal de estiagem, sol ou céu azul em Natal, a capital do sol. As chuvas e o vento forte não davam sossego. Eu permanecia trancado, ora no apartamento da amiga, ora na casa com goteiras da amiga da amiga. Comecei a estudar mapas em busca de novos destinos. E, para o meu desconsolo, foi marcado almoço na casa da amiga da amiga. As coisas correram como o previsto, ou seja, uma tortura. O ambiente sempre pesado, pessoas doentes ou tristes, comida horrível acompanhada de gigantescas garrafas de refrigerante. A soturna e negativa dona da casa mal conversava, a despeito de minhas tentativas de animar o velório. À tarde, a chuva deu trégua, o céu ficou parcialmente azul. Convidei todos para passear pelas praias e espairecer. Não puderam ou não quiseram. Saí sozinho mesmo, sem saber exatamente aonde ir. Necessitava me afastar daquele ambiente mofado e depressivo.
Cheguei à praia de Ponta Negra pouco antes do anoitecer. Durante o percurso, muita gente, animação e vida, me fazendo sentir aliviado. A praia ainda não estava tomada apenas por gringos, putas, traficantes e os coitados potiguares a serviço de tudo aquilo. Mas o cenário do comércio era lamentável. CD´s de rock e afins. Bares e lojas com títulos escritos em inglês. Ambulantes chapados dançando sob os aplausos de turistas chapados. Artigos para lá de manjados, preços altos, barracas de quinquilharias. Nada diferia das praias badaladas pelo mundo afora, destinos comuns dos gringos do tipo padrão, mais interessados em sexo, drogas e música descartável do que no respeito à cultura local. O vendedor de camisetas, completamente alucinado pelo tanto que consumiu, cismou comigo. Queria porque queria me empurrar uma camisa da seleção brasileira. Não foi fácil me livrar do sujeito. As prostitutas adolescentes começavam a baixar pelo calçadão e bares. Voltei ao apartamento antes da noite esquentar.
O tempo abriu finalmente. Logo após o café da manhã pegamos nossas tralhas e fomos para a parte norte da praia de Ponta Negra, mais familiar e potiguar. Estavam lá outras amigas dela, com as quais formamos a roda. Uma delas nos convidou para almoçarmos em restaurante isolado na praia de Genipabu, ao norte de Natal. Pagamos a conta e fomos de encontro a enorme congestionamento na ponte sobre o rio Potengi. Horas depois entramos em restaurante no pé da duna de Genipabu, de frente para o mar, construído todo em madeira. Devoramos caipirinhas, saborosos ensopados de camarão, peixadas, sorvetes, sucos. Quase nem percebemos o sol baixar no horizonte e dourar a imensa duna ao nosso lado.
continua...

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

do Acre à Bahia (parte 4/7)

...continuação
Durante a caminhada por uma única rua, desde o centro, foi possível notar a mudança brusca do bairro de ricos de Batista Campos, com amplas praças, mangueiras centenárias, residências de alto padrão, até a miséria do bairro de Cremação, com favelas, esgoto a céu aberto, muito lixo, nenhuma arborização, quase sem calçadas. Mas não faltava o ópio, na forma de inúmeras igrejas empresariais.
O televisor do salão do café da manhã do hotel estava vomitando lixo de alguma das tantas religiões empresariais. Eram bobagens e mais bobagens dogmáticas. No momento em que ninguém reparava, mudei de canal.
Almoço tardio e informal em casa de colega paraense. A tarde fluiu sem pressa diante das cadeiras e bancos do quintal sombreado. Todos foram bastante acolhedores. O frango no tucupi, a caranguejada e o tacacá abafaram. Já era noite quando me despedi apressado. É que a dona da casa conseguira ingressos gratuitos para a primeira noite do festival de música erudita de Belém no teatro da Paz.
O ônibus para o Maranhão partiu à noite, lotado. A chuva ajudou a refrescar e as frestas abertas das janelas ventilavam naturalmente. Bem mais eficiente e barato que o desnecessário ar condicionado.

Entrada no estado do Maranhão por rodovias completamente abandonadas e sem manutenção, em meio à lama, crateras e atoleiros. Veículos atravessavam ou seguiam na contramão. Caminhoneiros ameaçavam bloquear a rodovia com o intuito de sensibilizar quem quer que fosse. Verdadeira calamidade na principal via que liga o norte e o nordeste do Brasil. Era o Maranhão, estado de belezas naturais, cultura fascinante, povo acolhedor, mas de situação social catastrófica. Aos trancos e barrancos o ônibus avançava naquela buraqueira. Ao amanhecer a cidade de Pinheiro e logo micro-ônibus com destino a São Luís. A balsa, pela baía de São Marcos, veio salvar dos intermináveis solavancos das estradas. Mas o mar não estava nada calmo e a balsa balançou bastante.
Saí para circular pelas ladeiras e becos da Praia Grande. Impossível não se render ao charme da noite no centro histórico de São Luís. Iluminação amarelada, becos, ladeiras, casarões com azulejos, os simpáticos bares, a cantora ao violão. A noite apenas começava.
Pela manhã caminhei despretensiosamente pelas ruas e becos do centro histórico. Entrei nas igrejas e depois me sentei sob a sombra no largo do Desterro, simpático, vazio, calmo. E combinava como o que eu estava lendo, justamente o livro Largo do Desterro, de Josué Montello. Não queria mais nada além de contemplar os arredores. Independente do estado de conservação das casas e sobrados, ou da existência de algumas construções descaracterizadas e modernas, essa região da cidade apresentava conjunto arquitetônico extenso e impressionante. Num dos sobrados restaurados devorei torta de camarão, arroz e cuxá.
Logo cedo tomei o micro-ônibus com destino a São José do Ribamar, no extremo nordeste da ilha. O percurso cortou bairros pobres de São Luís e trechos com mata nativa. O centro da cidadezinha projetava-se no mar, tendo a praia de um lado e trapiches do outro. Na ponta e final da avenida principal, no alto da colina, encontrava-se a estátua de São José do Ribamar, com gruta abaixo tomada de imagens religiosas. O sol parecia querer rachar a minha cabeça. Caminhei pelo ancoradouro, com o mercado de peixes, ruas adjacentes pobres e sujas. A praia, do outro lado, conquistava pela simpatia e pequena extensão. Mais adiante havia o manguezal evoluindo para o rio estreito, com casinhas nas margens. A maré secava rapidamente e facilitava o acesso pela areia e lodo. Subi em restaurante da parte alta da cidade, com bela vista do mar e do manguezal.
Assisti em São Luís à apresentação solo do violinista cearense Nonato Luiz, que exibiu repertório com composições eruditas próprias, mais homenagens tocantes a Luis Gonzaga e Humberto Teixeira. Durante a interpretação de Bela Mocidade, antigo tema do boi de Axixá, a plateia, emocionada, o acompanhou cantarolando, bem baixinho. E depois apreciei a tiquira, aguardente regional de coloração lilás, feita de mandioca brava. Tive que repetir a dose para confirmar a qualidade.

Ônibus com destino à cidade de Raposa, no noroeste da ilha. No caminho, o real perfil da moderna São Luís. Mansões e condomínios fechados em Olho D’água e Araçagi, cercados de miséria por todos os lados. Favelas e mais favelas, casas rodeadas de lixo e esgoto a céu aberto. Crianças obrigadas a se deslocar em ônibus lotados por quase trinta quilômetros até a unidade escolar mais próxima. E ainda havia a devastação da vegetação nativa. Em Raposa o que predominava era a miséria das palafitas e favelas sobre antigas áreas de manguezais. Muito lixo, ratos, urubus, nada de saneamento básico. Crianças perambulavam pelas ruas e becos sem calçamento e pediam moedas aos passantes. Meninas novas se prostituíam nas ruas e em bares próximos ao mercado de peixe. Apesar da miséria gritante, Raposa ainda guardava muito verde, manguezais e a praia com os diques de proteção contra o avanço do mar. A economia era puxada pela pesca. Grandes bancadas secavam os peixes ao sol antes da comercialização.
De volta a São Luís, me sentei no banco da praça central, ao lado da catedral. Trabalhadores iam e vinham de todas as direções. Desocupados ofereciam câmbio de moedas estrangeiras. Meninas menores de idade ofereciam os corpos. Um homem de meia idade abordou três delas, conversaram não sei o quê e partiram de carro para não sei onde.
Os nomes de José Sarney e de outros entes queridos da família batizavam ruas, avenidas, pontes, praças, escolas, hospitais, prédios públicos, na capital e interior do Maranhão.
Apesar de urbanizada, a praia do Calhau era limpa, tranquila, servida de quiosques. Mas carecia de beleza. A areia era dura, a cor acinzentada do mar não empolgava. A fila de enormes navios de carga, pouco antes da linha do horizonte, prontos para levarem os recursos minerais brasileiros embora, não agradava. Valia pelo sossego e privacidade, com pouca gente no sábado ensolarado.
O ônibus partiu rumo à viagem de cinco horas até Barreirinhas. A paisagem evoluiu de campos vazios para areais, babaçuais, buritizais, cursos de águas escuras e límpidas. Nos arredores de Morros, o rio caudaloso corria entre pedras, abastecido por muitas nascentes. No trajeto também havia muita miséria, abandono, ausência do poder público. Famílias inteiras se amontoavam em barracos de taipa, com cobertura de palha de buriti, chão de barro liso e inexistência de móveis. Depósitos de seres humanos, sem qualquer tipo de saneamento básico ou água encanada. Eram negros na maioria, com rostos sofridos, completamente desamparados na luta diária pela sobrevivência.

Em Barreirinhas almocei em restaurante na beira do rio Preguiças, lento e caudaloso, a referência marcante defronte à cidade.
 Antes da meia noite não havia mais alma viva pelas ruas ou praças. Os ambulantes recolheram as barracas, inclusive aquela onde o simpático e rústico maranhense me preparava caipirinhas cheias de gelo. Um silêncio gostoso cobria tudo. E o sono bateu em cheio.
Embarque cedo em caminhonete com tração nas quatro rodas rumo aos Lençóis Maranhenses e que cruzou o rio Preguiças de balsa. Após percorrer areais com raríssimas casas e moradores, já dentro dos limites do parque nacional, atingimos o início das grandes dunas. Caminhamos dunas acima. O público consistia, na maioria, de turistas convencionais, casais, idosos ou quase. Além do motorista, um guia nos acompanhava. Boa gente, mas quase não falava ou quase nada sabia responder. Visitamos a lagoa Azul, lagoa do Peixe e outras menores, com direito a relaxantes paradas para banhos refrescantes ou simplesmente contemplar as dunas sem fim. As águas eram invariavelmente cristalinas, mornas, com pequenos peixes. A impressão do extenso deserto fascinava. Grupos se formavam e aconteciam bons papos. A maioria dos turistas logo se cansava, parava, sentava e não queria ver mais nada. Fiz amizade com um carioca e dois aposentados paulistas bons de papo.
De volta a Barreirinhas, marcamos almoço tardio no restaurante na beira do rio. Optamos pela galinha caipira ao molho pardo. O garçom nos alertou que o prato demoraria cerca de duas horas, pois requeria matar a galinha na hora. Ninguém tinha pressa. A tarde corria solta e vagarosamente como as águas do rio Preguiças. Encomendamos aperitivos e mais bebidas. Logo em seguida ouvimos a gritaria no quintal ao lado do restaurante. Lá estavam o garçom e duas cozinheiras, às gargalhadas, correndo em desespero atrás das galinhas. O garçom era o que mais tentava e menos conseguia chegar perto. Escolheram a galinha branca. Trinta minutos depois, uma das cozinheiras conseguir pegar a fugitiva pela asa. E, após quase duas horas de espera, entre goles, finalmente foi servida. Atacamos aquela delícia feito animais.

Fiquei com a turma circulando pela orla. Paramos em uma das barracas para nos refrescar e jogar conversa fora até o início da madrugada. As barreirinhenses, rústicas e charmosas, ainda que muito jovens, circulavam com amigas, com os namorados. Mais uma noite agradável na beira do rio, com temperatura amena, sob o céu estrelado.
Na volta ao hotel, o carioca não aceitou minha sugestão de cortarmos caminho pelos becos. Alegou que seria perigoso e que poderíamos ser assaltados ou assassinados por traficantes que dominavam o local. Deve ter esquecido que estávamos em pacata cidadezinha do interior do Maranhão e não em capital ou grande cidade. Não entendeu e ainda afirmou que me ensinaria a sobreviver nos dias de hoje. Não conseguia relaxar, coitado.
Pela manhã, verifiquei que o barco de linha, que subia e descia o rio Preguiças regularmente, estava quase de partida. O comandante me garantiu que o barco retornaria ainda naquela noite. Eu e o carioca embarcamos. A tranquila viagem, de cerca de três horas de duração, cruzou belas paisagens, com destaque para as grandes dunas entre Vassouras e Caburé, na margem direita do rio.
Desembarcamos nas areias de Caburé, básica, calma e ventilada pela brisa constante. Após a partida das voadeiras vindas para os passeios de um dia, o silêncio imperou em Caburé. O pôr-do-sol foi belíssimo, colorindo o horizonte, antes do luar se impor e deixar o reflexo prateado nas águas do rio. Embarcamos de volta a Barreirinhas no meio da noite, mortos de sono e cansaço.
Despertei cedo, acertei logo a caminhonete para garantir lugar. A viagem de cinco horas até Tutóia foi por areais improvisados em estrada. A carroceria batia e balançava muito. Éramos obrigados a segurar onde desse para não despencarmos no chão. Mas o tempo passou rápido. Havia passageiros simpáticos, sobretudo uma professora aposentada que me descreveu o amor pela educação e pelos alunos, os golpes que sofreu do sistema de ensino que pouco se importava pela qualidade do trabalho e também sobre os sonhos de recomeçar a ensinar. A paisagem, rústica e deslumbrante, exibia dunas, buritizais, lagoas com aguapés, rios de águas cristalinas, casas de taipa e cobertas de palha, pequenas plantações, carnaubais. Os moradores, poucos e miseráveis, eram acolhedores e sorridentes.
Em uma parada num bar em meio ao areal, apareceu um caboclo me oferecendo mercadoria guardada em um saco plástico. Pelo formato e cores, parecia um réptil. Já de volta à carroceria da caminhonete, comentei o fato com o carioca que, com toda a esperteza e experiência inigualáveis, garantiu que a tal mercadoria era cocaína, pois era assim que os traficantes se comportavam.
Na chegada a Tutóia, a caminhonete parou na estação rodoviária. O carioca afobado desembarcou para pegar ônibus a Parnaíba, apesar de eu aconselhá-lo à tranquilidade e belezas da viagem de barco no dia seguinte pelo Delta do Parnaíba. O coitado nem parecia que estava passeando. Enxergava perigo em tudo, riscos de assaltos, do barco afundar, da caminhonete capotar, de qualquer administração pública se corromper, de se adoentar, de não haver assistência médica adequada.
À noite, nas imediações das escolas de Tutóia, as calçadas fervilhavam de estudantes e colegas. Passeavam, namoravam, conversavam, observavam, assistiam musicais pelo telão, aproveitavam a noite estrelada e fresca. Animação e diversão não faltavam. Tomei sorvete de cupuaçu. O cansaço se fez presente e caí no sono.
continua...

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

do Acre à Bahia (parte 3/7)

...continuação
Parada ainda no escuro em Vitória do Jari. Em frente, do lado paraense, cenário típico de Cubatão. Indústrias, chaminés, fumaça fedorenta, ruídos de máquinas. Era a fábrica de celulose do Jari.
Chegada em Laranjal do Jari em pleno amanhecer. O ambiente na beira do rio estava agitado àquela hora da manhã. Em alguns bares a noite ainda não havia terminado. As construções eram de madeira, no formato de palafitas, ou esteio.
Subi em um táxi lotação no início enlameado da grande avenida que ligava as partes antiga e nova de Laranjal do Jari. Em ambos os lados, passarelas e mais passarelas de acesso a dezenas de casas e barracos de madeira, podres ou quase podres. Nenhum sinal de saneamento básico, água encanada, coleta de lixo.
Laranjal do Jari era fantástica, horrorosa e fascinante ao mesmo tempo. O charme concentrava-se na margem do rio, no famigerado “Beiradão”, que correu fama durante as décadas de 1970 e 1980 pela violência e prostituição desenfreadas, ao lado de miséria alarmante, da ausência de qualquer tipo de infraestrutura social. E tudo graças ao vizinho paraense Projeto Jari, de propriedade, na época, do milionário estadunidense Daniel Ludwig. O objetivo era o lucro imediato, indiferente à desgraça dos trabalhadores e da população. O país vivia sob a ditadura civil e militar, protegendo o grande capital, sobretudo o estrangeiro, contra o povo brasileiro.
Ali virou um emaranhado de esteios, interligados por passarelas precárias, em madeira, em estado avançado de deterioração. Pelos becos estreitos estendiam-se o comércio variado, dormitórios e hotéis decrépitos, restaurantes baratos, oficinas, residências podres, bares sujos e com frequência para lá de pesada, puteiros sombrios, igrejas, escritórios públicos antigos, diversos ancoradouros onde também se limpavam peixes. As águas escuras e entupidas de lixo do rio Jari circulavam por baixo e, nessa época de cheia, quase tocavam as passarelas. O complexo urbano sustentava-se sobre extensa área de várzea que avançava até a parte mais alta da cidade. Foi construído espontaneamente e assim sobrevivia aos trancos e barrancos, esquecidos pelos órgãos públicos.

Pela manhã os bares do Beiradão já exibiam bêbados, putas, jogadores. Os moradores garantiam que o clima dali acalmara com o tempo e já não ocorria média diária de dez a quinze assassinatos. Repetiam que a polícia federal conseguiu dar conta do recado, mas, à noite, ninguém garantia a segurança de ninguém. O Beiradão, na verdade, nunca foi caso de polícia, mas de ausência de justiça social e dignidade humana. O local deveria ser preservado e combinado com urgentes e intensos investimentos sociais controlados pelos próprios moradores.
Cheguei de catraia à margem paraense do rio Jari, no distrito de Monte Dourado, município de Almeirim. Do alto a visão privilegiada do rio e, no lado amapaense, os esteios do Beiradão em Laranjal do Jari.
As variadas casas noturnas abundavam em Laranjal do Jari, prometendo atrações irresistíveis para aquela noite de sábado. Os principais bares, restaurantes, hotéis e casas noturnas situavam-se na avenida principal, ao lado de inúmeras empresas evangélicas caça-níqueis, que usavam e abusavam de todos os nomes possíveis para atrair trouxas. Pelos alto-falantes berravam propaganda obscurantista, o fanatismo, o fim do mundo para quem não se entregasse a Je$u$. Também carros de som convocavam a população para as atrações do circo precário, entre elas a de desvendar os segredos da vassoura amaldiçoada.
E a noite começou mostrando grande animação na cidade. Ao redor da praça da parte nova a frequência era variada e democrática. Cada um se comportava ou se vestia como queria, descontraindo o ambiente. Caminhavam, paqueravam, bebiam, comiam, conversavam em grupos ou casais.
Comprei um litro de açaí grosso em um dos inúmeros pontos de venda de vinho de açaí. Usei a cozinha do hotel para acrescentar açúcar, algumas pedras de gelo e degustar aquela iguaria em menos de cinco minutos.

Acordei cedo, empurrei o café da manhã e esperei o ônibus a caminho de Macapá. A estrada de chão estava em condições razoáveis, com buracos e pontos de lama devidos às recentes chuvas de inverno. O veículo velho, mal cuidado, sem espaço suficiente para as pernas, atolou apenas uma vez. Os passageiros tiveram que desembarcar e subir a rampa a pé. O motorista conseguiu desencalhar e reembarcamos.
A paisagem mostrava relevo ondulado, com muitos sobes e desces. Cruzou a extensa reserva extrativista do Cajari, unidade de conservação de desenvolvimento sustentável para extração de castanha da Amazônia. Impressionaram as imensas e centenárias castanheiras. Foram quilômetros e quilômetros de mata nativa, variada e bem preservada dentro da reserva. Mais adiante a rodovia cortou grandes extensões de cerrado, com árvores retorcidas, campos, buritizais, igarapés fluindo sobre lajes de pedra. Atravessou pontes de madeira sobre igarapés de águas escuras ou esverdeadas. Os açaizais abundavam, carregados de frutos. Poucas casas nas margens da estrada.
Entardecia ao entrar na rodoviária de Macapá.
Anoiteceu e saí em direção à simpática orla na margem do rio Amazonas. Optei por barraca de rua para saborear vatapá, maniçoba e arroz. O sorvete caprichado saciou a fome. A lua cheia refletida nas águas recuadas pela maré do rio Amazonas dava espetáculos à parte, de coloração alaranjada, passando a amarelada e finalmente prateada, enorme e brilhante.
Macapá agradava com centro arborizado, praças, extensa orla urbanizada de maneira humana na margem do rio, pela qual espalhavam espaços para atividades físicas, caminhadas, namoro, bares, restaurantes e lanchonetes, em geral para o lazer noturno. No almoço encarei caldeirada de filhote em local com visual do rio Amazonas e das ilhas no fundo do horizonte. Saí dali alimentado, ensopado de suor, feliz da vida.
A lancha partiu na maré alta e chegou em Afuá ao entardecer, cortando paranás do delta do rio Amazonas. Quando a terra se aproximava, surgiram açaizais, buritizais e demais palmeiras, casas de madeira isoladas.
Acordei cedo e conversei com um catarinense radicado na região, que ganhava dinheiro cortando os caules dos açaizeiros para vender palmito. Graças a esse processo predatório, os açaizais estavam em acelerado processo de extinção. E ninguém parecia se importar.

O município paraense de Afuá, no noroeste da ilha do Marajó, era suspenso e na forma de palafitas interligadas por passarelas de madeira, exceto as principais, de cimento. Não havia nenhum tipo de veículo motorizado em Afuá, nem carros, nem motos, apenas bicicletas e os famosos bicitáxis. Os afuaenses ligavam duas bicicletas através de canos soldados, instalavam bancos estofados para duas ou três pessoas na frente, no meio, na parte de trás. Eventualmente usavam a traseira como bagageiro ou caixas de som. Havia pedais em ambos os lados e o volante no lado esquerdo do banco dianteiro. E podiam ser alugados. Circulavam durante a noite com iluminação provocante, invariavelmente acompanhada da sonoplastia das caixas de som, causando sensação.
O almoço na pousada foi um banquete, na base de arroz com chicória, camarão, carne de jaboti, filé de peixe, feijão, salada de camarão miúdo e palmito, sucos, açaí de sobremesa. Não satisfeito, encomendei à tarde um litro de açaí grosso. Devorei o litro todo com adição de açúcar e farinha para encorpar ainda mais.
Caminhei na parte de trás da cidade, área maior que a central, mais nova, mais pobre, mas com as mesmas características, suspensa e construída em madeira. Ao fundo, madeireiras e depósitos de palmito do açaí.
Afuá também se destacava pelas minúsculas praças situadas nas esquinas das passarelas, com bancos de madeira, cercadinho, floreiras e estátuas de cor amarelada com reproduções da arte marajoara. Nas passarelas externas havia também bancos isolados de madeira, com encosto e suporte para os braços. Caíam como luva para descanso durante as caminhadas ou simplesmente para o papo entre amigos.
Outro banquete na pousada na hora do almoço. Desta vez foram servidos picanha grelhada, pitu fervido no próprio caldo, arroz, feijão e farofa. Não faltou o saboroso açaí de sobremesa, com farinha de tapioca.
A economia da região de Afuá baseava-se no camarão, madeira, palmito e açaí. O alívio era que a extração da madeira, insustentável sob todos os aspectos, passava por séria crise, talvez terminal. Que afundasse de vez e deixasse de pé o restante da floresta. Mas pouco se cultivava a terra. A cidade trazia de fora praticamente toda a alimentação. A elite local transferia a culpa da situação para os caboclos nativos, justamente os primeiros e maiores interessados em colaborar.
Embarquei bem cedo na lancha rumo a Macapá.
De noite a orla fluvial da capital encheu e se animou. A frequência era variada. Adolescentes faziam malabarismos com as bicicletas e davam saltos mortais dentro das águas do rio Amazonas. Muita música e alegria imperavam no bom e velho espaço público, livre e democrático.
Os navios para Belém ofereciam saídas apenas semanais, cobravam caro por viagem de 24 horas e, contrariando o costume em toda a Amazônia, não incluíam as refeições no preço da passagem.
Em Belém visitei com calma o mercado Ver-o-Peso, a feira ao redor, com frutas, verduras, temperos, plantas medicinais, garrafadas, simpatias. O sol massacrava. Segui ao Forte do Presépio, à Casa das Onze Janelas, às construções restauradas nos últimos anos para abrigar museus de peças regionais e históricas, galerias de arte, restaurantes. A cidade velha encontrava-se em processo de revitalização, lento, mas louvável pela preservação do importante conjunto urbano.
Caminhei pelas ruas arborizadas dos bairros de Campina, Nazaré, Batista Campos, sombreadas pelas mangueiras centenárias, até o museu e parque Emilio Goeldi. Em meio a trecho de floresta preservada, os animais nativos estavam expostos em jaulas minúsculas, desumanas, sufocantes. A onça negra apresentava comportamento esquizofrênico tal o sofrimento naquele aperto. O parque, no entanto, é amplo, com muito verde e sombra, árvores imensas, lagos, grande variedade de plantas e animais.
Pulei da cama ainda no escuro e voei em direção à Feira do Açaí. Dezenas de barcos atracavam e desembarcavam cestos e mais cestos lotados da fruta. Os potenciais compradores examinavam o produto, cutucavam, levavam à boca e iniciavam a negociação. Antes das oito horas da manhã já estava tudo vendido. Perambulando por ali, prostitutas cansadas, vendedores de comidas quentes, jogadores, aproveitadores em geral, tentavam atrair os trabalhadores rurais e barqueiros para gastarem o dinheiro recém-adquirido.
O campus da Universidade Federal do Pará era mais uma imagem do descaso com a educação no país. Mal cuidado, com construções em péssimo estado em meio ao mato alto, entulhos até nos corredores das salas de aula. Faltavam professores, equipamentos, boas instalações, bibliotecas. O sucateamento do ensino público estava em processo avançado. Mas a localização era privilegiada e agradável, ao lado das águas do rio Guamá.
Almocei em peixaria muito simples, com atendimento familiar e informal, toalhas de plástico e comida extremamente saborosa. Degustei a caldeirada mista de caranguejo, camarão e filhote. As caipirinhas bem preparadas não podiam faltar. Assim como o incrível suadouro pelo corpo todo.
continua...

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

do Acre à Bahia (parte 2/7)

...continuação
O barco atracou no porto de Manaus três dias depois da partida em Porto Velho. Nem bem entrei no quarto do hotel e já sentia falta das viagens fluviais.
Li bastante e travei árdua luta com os carapanãs do quarto. Atacavam somente à traição, se escondiam sobre fundos escuros, pareciam notar quando eu os encarava e imediatamente desapareciam. Faziam guerra de guerrilha, só avançavam na certeza, em minhas desatenções ou quando eu olhava em outras direções. Foram trinta minutos de paciência e obstinação. Mas compensou a leitura do clássico Memórias de um Sargento de Milícias, de Manoel Antônio de Almeida.
A cinzenta Manaus sempre encarou a floresta como obstáculo. Por isso o uso abusivo de concreto e asfalto. Quase nada de árvores e sombras refrescantes. O calor insuportável, as enchentes, o alto consumo de ar condicionado, não eram meras coincidências. A cidade também repelia a herança indígena, ignorando a sabedoria milenar dos povos que sempre habitaram a região antes da invasão europeia. E a cidade se tornava consumista, individualista, feia, com esgoto a céu aberto, sem verde, sem áreas públicas de lazer, sem valorização do belíssimo rio Negro, sem humanidade.
O barco partiu praticamente vazio, como se fosse entre grupo de amigos. A noite foi estrelada com direito a jogo de dominó.

Amanheceu e o barco deixou a infinidade de água do leito principal do rio Amazonas e cortou caminho por paranás e igarapés estreitos, cortando extensas zonas alagadas. As terras que abrigavam casinhas de palha ou madeira estavam parcialmente submersas. Eram fazendas de gado, pequenas comunidades, habitações isoladas que funcionavam na época seca. As cheias faziam as famílias migrarem para terras mais altas. Os ribeirinhos nos ensinavam como se comportar harmonicamente com as diferentes estações da natureza.
E o barco atracou no porto flutuante da cidade de Nhamundá.
As águas do rio Nhamundá batiam nos barrancos do fundo do hotel. Os coqueiros, laranjeiras, árvores floridas, passavam atmosfera de cabana e praia. Com o rio cheio, a praia, dotada de centro cultural, quiosque para festas, bares, estava reduzida a curta e estreita faixa de areia. Até árvores e postes de iluminação encontravam-se parcialmente submersos. O contraste entre o branco da areia e o negro das águas do rio encantava os olhos. No auge da estação seca, quando se formavam longas praias, a cidade organizava o festival de pesca do tucunaré.
A cidade de Nhamundá se situa em ilha alongada no rio de mesmo nome. Dei a volta completa em toda a ilha, sem pressa. Raros eram os carros circulando pelas ruas. As bicicletas reinavam, seguidas dos pedestres e motos. Crianças e adultos paravam a fim de me observar melhor, esperando minha iniciativa para o cumprimento. Os velhos ditadores regionais estavam onipresentes na cidade, com os nomes em escolas, ruas, praças, prédios públicos.
O sexagenário proprietário do hotel vivia sozinho, longe da esposa residente em Manaus. Gastava uns trocados com mulheres, de preferência as maduras, inclusive as casadas. Elas sempre precisavam de dinheiro e o conheciam pela generosidade. Ele se gabava descrevendo o diálogo com as candidatas:
- Tudo bem com o senhor?
- Tudo bem e a senhora?
- Tudo bem também. Desculpe incomodar, mas estou precisando de dinheiro.
- Quanto?
- Pode ser 10 reais.
- Sem problema.
- Muito obrigado.
- E como vai me pagar? Não precisa responder...eu sei...
- É...
- Quando a senhora pode vir?
- Hoje à tarde. Meu marido estará fora.
- Está bem, toma lá 20 reais. Espero à tarde então.
E ele me dizia com o olhar bondoso:
Ela estava precisando. Eu ajudei. Elas sempre aparecem...

Tomei pequeno barco para a cidade paraense de Faro na margem esquerda do rio Nhamundá. Faro era menor, mais antiga e menos movimentada. Os alegres moradores sempre me cumprimentavam ou sorriam. Ouvi pelos alto-falantes nas ruas o transcorrer da sessão ordinária da câmara municipal. A pauta única homenageava a sogra de um dos vereadores, falecida na noite anterior. Os nobres parlamentares declamavam adulações decoradas à defunta, enalteciam o exemplo de vida, as qualidades e outras importâncias. Retornei ao lado amazonense.
O prefeito de Nhamundá estava em Manaus, em debate transmitido ao vivo para a televisão da cidade. O assunto era o cultivo de dendê no município. Os poucos clientes do restaurante costumeiro agouravam e afirmavam que o projeto jamais daria certo. Os garçons e funcionários viam a iniciativa com bons olhos.
O barco partiu no início da noite rumo à cara viagem de apenas quatro horas até Parintins. O vento era fraco e morno, o céu bastante estrelado. O percurso passou por paranás, alagados, furos. As árvores esporadicamente se aproximavam, zonas de capim exalavam forte odor de mato, sapos e rãs faziam uma barulheira enorme. Desembocou no rio Amazonas apenas no final da viagem.
Ao desembarcar em Parintins, subi em moto-táxi para me levar até hotel antigo. A energia se foi no meio da madrugada. O quarto, sem ventilação natural, ficou um forno.
Parintins, cidade bonita e aparentemente arrumada, contava com esgoto a céu aberto, com água negra e fétida correndo nas ruas, calçadas raras e esburacadas. O poder público e a indústria do turismo, setores mais voltados aos lucros da festa do boi-bumbá, talvez se esquecessem desses “pequenos” detalhes para quem vivia diariamente na cidade.
Assisti à parte dos ensaios no curral do boi Caprichoso por ficar mais perto do centro. Muita gente, muita animação e entrada livre. Do lado de fora, bares e barracas de ambulantes vendiam comes e bebes. As cantorias e as coreografias, como notadas no ano anterior, decepcionaram. O ritmo lembrava as fanfarras estudantis. As coreografias, executadas por crianças e jovens com trajes indígenas, mais pareciam às das dançarinas de programas de auditório. Movimentos pré-definidos de braços, pernas, quadris. Tudo no embalo das toadas, interpretadas pelo puxador e acompanhadas por percussões e teclado.

Retornei em longa volta pela bucólica orla antiga do rio Amazonas, de longe o melhor pedaço da cidade. Silêncio, calma, casais namorando, pouca gente circulando. As águas refletiam a luz prateada da lua quarto crescente. Antiga, estreita, sinuosa, humanamente urbanizada, a orla guardava árvores, bancos de jardim, pequenas e simpáticas praças, bares discretos, extensa murada e a encosta para o rio. Durante as manhãs, poucas pessoas circulavam por ali e a paz era ainda maior.
Praticamente ninguém andava a pé em Parintins. As bicicletas e principalmente as motos predominavam nas ruas. Carros, para o bem da cidade e dos moradores, ainda eram poucos.
O proprietário de restaurante pintava quadros em tecidos. Os temas abrangiam cenas amazônicas, utilizando cores fortes em estilo realista, surrealista, cubista. Era famoso e atendia encomendas da elite regional. Pretendia candidatar-se naquele ano à presidência de um dos dois únicos bois-bumbá de Parintins. Eram dois bois, somente dois, nada mais que dois bois.
A lancha embicou no flutuante no começo da tarde. As águas do rio Amazonas pareciam as do oceano, agitadas e com ondas. Tomei a sopa com pão e cochilei. A lancha atracou nas docas de Santarém à noite. Os tipos físicos mudaram visivelmente quando cruzei a fronteira do Pará. Traços mais alongados, mais miscigenação, mais mulatas, mais loiras.
O tempo permanecia instável, abafado, com nuvens carregadas, sol ardido. Mas o calor não me impediu de ir ao restaurante especializado em caldeiradas de peixes regionais. Tomei duas caipirinhas enquanto esperava a caldeirada de tambaqui, que me deixou totalmente ensopado de suor. Ainda matei a sede com a jarra de suco de cupuaçu.
Santarém permanecia simpática e agradável, pelo menos na região da orla do rio Tapajós. Em noite calma de quarta-feira, moradores caminhavam pelo calçadão, outros pescavam, outros sentavam na calçada para conversar ou namorar. Soprava brisa refrescante do rio.
Caminhei até o porto, deixei a mochila no camarote, me sentei no convés intermediário para descansar. O calor abafado não dava tréguas e a fraca brisa vinda do rio não refrescava. O sol abriu e o calor tendeu ao infinito.
O barco que partiu ao entardecer oferecia dois pisos utilizáveis. O terceiro estava vazio e era usado apenas para a caixa d’água e estender roupas. Mas os integrantes do grupo musical, que também seguiriam no barco, instalaram toda a parafernália sonora justamente ali, ligando brega e forró no último volume.

Depois do banho frio e dois pratos da sopa substanciosa, alguns passageiros bebiam cerveja, outros se recolhiam às redes. O vento morno soprava na noite e relâmpagos brilhavam no leste.
Após a partida noturna da cidade de Monte Alegre pegamos forte tempestade. As águas do rio Amazonas se agitaram. O barco oscilava terrivelmente. Ninguém conseguia relaxar. O pânico tomou conta dos passageiros e até de alguns tripulantes. Ouvimos forte pancada e entrou água pela popa. Caixas de bebidas deixadas no convés superior se esparramaram pelo piso causando barulho preocupante. Passava das três horas da madrugada. Alguns passageiros choravam e gritavam, outros vestiam os coletes salva-vidas de maneira desajeitada. Em gesto desesperado uma mãe enfiou o bebê de colo pelo orifício do colete e nem sequer tentou amarrá-lo. Os olhares de todos estavam vidrados. Permaneci na porta do camarote, observando tudo, tremendo de medo. O comandante mostrava segurança nas decisões, com experiência de vinte anos naquela rota. A chuva não cessava, o vento tardava a atenuar, nos torturando durante horas. Muito medo e apreensão. Aos poucos, porém, a calmaria predominou e a maioria retornou lentamente às redes.
Amanheceu e atracamos na cidade de Prainha. Chovia com vento reduzido. As águas, no entanto, permaneciam agitadas. Os olhos de todos revelavam a noite mal dormida e o alívio de estarmos vivos.
O barco deixou as águas revoltas do rio Amazonas e entrou em extenso paraná. Aquelas águas calmas nunca foram tão bem-vindas. Ao norte despontava a serra da Velha Pobre. O tempo esquentou e o sol furou o bloqueio das nuvens. Atracamos na cidade de Almeirim, na foz do rio Paru, no começo da tarde.
             A calmaria do lado de fora permanecia firme. Após o anoitecer entramos no rio Jari e iniciamos a subida pelas águas escuras, calmas e espelhadas. Até o comandante comemorou a tranquilidade para pilotar a embarcação. Parada para desembarque na cidadezinha amapaense de Jarilândia. O barco subia o rio Jari tendo o Pará à esquerda, o Amapá à direita.
continua...