domingo, 22 de agosto de 2010

do Acre ao Tocantins (parte 5/7)

...continuação
Perto do meio-dia o barco parou em Almeirim, cidade sem cara de nada e erguida na foz do rio Paru. O calor tornou-se insuportável sem o vento. Embarcou nova passageira, mulher, provocante. Os homens do barco se disputavam para se encostar e puxar assunto. Desse jeito alguém teria que organizar fila para evitar tumulto. Do cais, duas gordinhas lançavam olhares insinuantes aos passageiros.
Durante o percurso, barcos e canoas encostaram para vender queijo em grandes pedaços ou para deixar novos passageiros. A monótona refeição do barco era na base de arroz, macarrão, carne e, somente no almoço, feijão.
A passageira embarcada em Almeirim permanecia junto do segundo candidato. Ele não desgrudava embora nada estivesse para acontecer. Ela mandava olhares sugestivos para outros.
Ventou forte durante a madrugada por mais de uma hora. As águas se agitaram em banzeiros. O barco balançou bastante, chegando a dar saltos acima da água. 
A chegada ao porto de Santana, no Amapá, dois dias depois da partida de Santarém se deu em plena madrugada. Permaneci dormindo até pela manhã. Nesse momento a maioria dos passageiros já havia desembarcado. Dividi taxi com uma paulista viajando sozinha e outro passageiro do barco até a cidade de Macapá, vinte e seis quilômetros mais ao norte, depois de cruzar a linha do equador.
Macapá não possuía edifícios altos, mas muito verde em praças e ruas. O rio Amazonas corria ao lado e o calor torrava. Nas margens do rio havia orla urbanizada, com quiosques de comes e bebes, extenso trapiche projetando-se nas águas com bondinho ligando a avenida até o restaurante na ponta. A pouca profundidade das águas do rio em frente à Macapá forçou a construção do porto estadual na cidade de Santana. Nas águas do Amazonas se destaca a estátua de São José. Mais acima o imponente forte de São José de Macapá, marco fundador da cidade, com obras de escavações arqueológicas e de restauração a fim de integrá-lo ao circuito cultural e de lazer da cidade. O sol do hemisfério norte em Macapá era de torrar e fundir o cérebro. Tinha que escolher com carinho o horário para caminhar.
O quarto sem banheiro do hotel era de madeira e com frestas nas paredes. Quase tudo se ouvia dos quartos vizinhos. Para não ver e também não ser visto, tapei os orifícios com papel higiênico. Nos vãos do piso, tocos de cigarro e outros objetos dos hóspedes anteriores e não removidos.

Acordei com o despertador bem cedo. Sem esperar o café da manhã do hotel, eu e a paulista tomamos táxi até a estação ferroviária na cidade de Santana.
Compramos as passagens para o último vagão do trem rumo a Serra do Navio. Optamos por assentos numerados, com poltronas macias e reclináveis. Subiram muitos passageiros sem lotar os vagões, de trabalhadores braçais a engravatados. Na segunda metade do trajeto a floresta surgiu imponente e sem grandes clareiras. Antes dali, cerrado, plantações de pinheiros e eucalipto compunham paisagem triste, monótona e estéril. Casas e pequenos vilarejos apareciam esporadicamente em meio a extensos açaizais. Nas paradas descíamos e caminhávamos pela estação ou pela beira da linha, sempre de olho no apito do maquinista. O trem sacudia ligeiramente, sem incomodar, permitindo apreciar a paisagem, cochilar, beliscar as comidas e salgados vendidos nos vagões ou mesmo nas paradas mais demoradas.
Nas proximidades da estação de Serra do Navio ouviam-se os gritos altos e roucos dos macacos vindos do interior da mata. Subimos até a vila de Serra do Navio, local planejado e construído para ser a moradia e trabalho dos quase dois mil funcionários da empresa ICOMI, transnacional de mineração estadunidense. Essa empresa explorou durante 50 anos, até o esgotamento, o minério de manganês. O Brasil exportou o minério bruto a preços irrisórios e a população local jamais foi beneficiada.
Comentava-se que uma empresa transnacional sul africana iniciaria a exploração de minério de ouro em local situado na linha ferroviária pouco antes do ponto final. Muitos viam como a salvação diante da ausência de perspectivas de trabalho para as populações locais. Mas a tendência seria, infelizmente, a mesma da exploração predatória do manganês. Altos lucros para os patrões, sem retornos para a população local.
Noite mal dormida pelo calor, mosquitos e desconforto da cama e do quarto. Consegui trocar para apartamento com banheiro, ar condicionado para espantar os mosquitos, duas camas e sem buracos na parede ou piso.
A frequência dos passageiros no apertado ônibus para a cidade de Oiapoque era jovem, entre homens e mulheres com aspecto de aventureiros, nada confiáveis, provavelmente garimpeiros, prostitutas, golpistas e afins.
Apenas o primeiro terço do trajeto foi em estrada asfaltada. Nos trechos sem pavimentação muitas eram as pontes de madeira, mal conservadas, passando sobre rios e igarapés cheios de pedras. A maioria delas apodrecia e estava pronta para cair. Havia previsão de pavimentação, sem prazo definido.

Na primeira metade do percurso predominou cerrado e a estéril monotonia das deprimentes e venenosas monoculturas de pinheiros e eucaliptos. Na segunda metade, prejudicada pela pouca luz, reapareceu a floresta com árvores de grande porte, neblina espessa, poças d’água e pouca lama, pequenos vilarejos. Muita sujeira, desolação e nenhuma opção para matar a fome nas três paradas na beira da estrada.
Cheguei no meio da madrugada na praça agitada da cidade de Oiapoque. Em meio à infinidade de barracas, bares e muitos bêbados, perguntei ao primeiro que apareceu sobre hotéis na cidade. Ele me sugeriu um nas proximidades, para o qual, cansado e desconfiado, caminhei pelas ruas escuras. Na hospedaria fui recebido friamente pelo vigia noturno, que mal me mostrou os quartos ruins, caros e sem café da manhã. Escolhi o menos pior e tive que pagar adiantado. Deixei a mochila no canto e, sem banho, desabei na cama rumo ao sono profundo.
A cidade de Oiapoque era um nojo, praticamente sem calçamento, muito lixo por todos os lugares, feia, mal cuidada, com cheiro de perigo no ar. As pessoas exibiam aspecto suspeito, sejam garimpeiros, putas, comerciantes de ouro e bugigangas, condutores de barcos, taxistas. Ninguém escapava. E todos exibiam aquela cara de espertos e malandros.
Nas margens do rio Oiapoque, que divide o Brasil da Guiana Francesa, o comércio era o caos. Um por cima do outro, barracas podres de ambulantes, com comida e bebida, mais e mais lixo, barqueiros oferecendo serviços, mulheres exageradamente maquiadas logo pela manhã. Parecia o esgoto do país.
Na outra margem do rio, a Guiana Francesa, ainda colônia da, assim considerada, civilizada França em pleno século XXI. Atingi a vila de Saint George através das caras voadeiras. A vila se resumia a posto militar de fronteira do governo francês, em volta do qual surgiram ruas, construções, cafés, bares. A maioria da população era negra e gorducha. Forte presença de brasileiros e da música brasileira. Por ser tudo mais caro na colônia da França, os guianenses vinham comprar no Brasil.

Por mais que se andasse em Oiapoque, nunca se chegava à parte boa. Não havia o centro. A cidade era uma imensa periferia com ruas de terra, poeira e lama, feia, suja, esculhambada, fedorenta. Não faltavam bares, no estilo de barracos de favela, com frequência que não poderia ser pior. Perambulavam morenas vulgares com cabelos tingidos de loiro, roupas mínimas, pouco escondendo as banhas e celulites em corpos ainda jovens. E dali martelava o som daqueles grupos musicais de sempre durante 24 horas por dia. Os vocalistas gritavam o nome do grupo e do disco a todo instante na desesperada tentativa de se diferenciar da geleia geral. Não paravam de tocá-los. O ruim tornava-se insuportável e a vontade era de vomitar. E ainda comi carne de sol ruim, acompanhada de baião-de-dois ruim, em restaurante ruim.
Durante a noite os habitantes de Oiapoque se concentravam ao redor do campo de futebol de areia. Em um canto localizava-se a parada do ônibus para Macapá. Não faltavam bares e botecos entupidos de bêbados, gritando, xingando, cantando, dançando. Eles se divertiam intensamente como queriam e podiam. Voltei ao hotel antes da meia-noite, evitando olhares das bandidas no horário de trabalho, com a firme certeza de querer continuar vivo. Ao jeito dela, porém, a cidade de Oiapoque era muito animada e a festa nunca terminava.
No meio da noite seguinte, já dentro do ônibus de volta a Macapá, dois bêbados subiram e, sem assentos livres, cambaleavam pelo corredor. Enquanto um tentava se equilibrar, apoiando-se nos passageiros, o outro se estendeu no chão, dormiu, roncou forte e se urinou todo. Na parada na cidade de Calçoene, mesas abarrotadas de bêbados desenhavam cena triste e deprimente, mais parecendo processo de autodestruição que simples diversão entre colegas.
Em todo o estado do Amapá encontrei maçãs frescas à venda. Eram pequenas, doces e saborosas. Valia comprar aos montes e comer aos poucos.
De volta à capital amapaense. Apesar das limitações, Macapá atraía pela simpatia pelo urbanismo singelo e pelos simpáticos habitantes. A região beira rio encantava mesmo durante o dia e sob o sol intenso. E após o pôr-do-sol a região se movimentava com muita gente e animação. Havia quiosques com música ao vivo, barracas com comidas e lanches típicos, sorveterias, sem falar nos vários ambulantes oferecendo os deliciosos bombons de cupuaçu, de castanha ou açaí. Os frequentadores aproveitavam o extenso trapiche para caminhar, correr, namorar, paquerar ou simplesmente observar as águas do rio Amazonas e o reflexo das luzes da cidade. Tudo se valorizava com o alaranjado da enorme lua cheia.

Devido à proximidade da foz do rio Amazonas no oceano Atlântico, as marés influenciavam fortemente o nível das águas. A ponta do trapiche, na maré baixa, secava completamente, inclusive a base da estátua de São José. Nesse período dezenas de pássaros ciscavam na lama em busca de comida. E na maré alta, as pequenas ondas levavam as águas do rio Amazonas até as muradas da avenida.
Pegando a avenida Beira Rio no sentido sul, passando pelo forte e o mercado, existe outra área de lazer, ainda maior, com mais quiosques, bares e restaurantes. Na ponta desse espaço, mais pistas de caminhada, palcos para apresentações culturais, gramados e quadras. Sempre nas margens do rio Amazonas, de onde soprava vento refrescante. O sol se mantinha implacável, mas a caminhada era para lá de compensadora.
Na minha última noite a região da Beira Rio estava mais cheia e movimentada. Depois do vatapá, camarão no tucupi e arroz com jambu nas barraquinhas, nada melhor para coroar a noite que bombons de cupuaçu.
Antes da partida do barco de volta para Santarém, inúmeros vendedores de bugigangas e comidas em geral circulavam pelos barcos do porto da cidade de Santana. Aproveitei para reparar as imediações da pitoresca zona portuária local. Eram construções velhas, residências de madeira, armazéns, mercearias, depósitos, bares com frequência perigosa e típica de porto, hotéis, dormitórios sujos e caindo aos pedaços, muita promiscuidade, putas em fim de carreira. Porto de verdade e sem frescuras.
O barco, novamente, não saiu lotado e a sopa, para esquentar, foi servida logo após a saída. Acrescentada às maçãs compradas no porto, fiquei bem alimentado. O piso superior de lazer, sem bar e sem os passageiros já recolhidos nas redes, tornou-se lugar perfeito para, sem iluminação, contemplar o céu estrelado, sentir o vento fresco da noite e refletir sobre os rumos da viagem.
Durante a noite, nas proximidades da foz do rio Jari, divisa entre Amapá e Pará, as águas ficaram revoltas e chegaram a preocupar. A impressão era de estar em alto mar.
Nos estreitos canais, bem ao norte da cidade paraense de Almeirim, ocorria o mesmo que no estreito de Breves ao sul da ilha de Marajó, embora em menor intensidade. Crianças avançavam com canoas a remo na direção do barco e, com gritos estridentes e balanço das mãos, esperavam a boa vontade dos passageiros para jogarem comida, roupas ou outras utilidades.
continua...

4 comentários:

  1. Obrigado pelo comentário.
    No blog há muitas reflexões de minhas viagens pelos interiores do Brasil e de outros países da América, Europa e Ásia, contendo críticas e questionamentos sociais e ambientais.
    Fique à vontade para pesquisar, ler, comentar, divulgar. Boas leituras!!!

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  2. Eu estive na Guiana Francesa na cidade de Apatou. Fui do Suriname para lá, através da pirogue, barco que parece uma canoa com um pequeno motor. A população negra, fala Takitaki, um dialeto local. Começam a ter filhos muito jovens e engordam. Na Guiana Francesa vivem de pensão do governo da França, que pagava 800 euros na época. No Suriname, 99% das brasileiras são prostitutas. Talvez eu tenha exagerado, seja 98%, quem sabe. Se quiser ler minhas impressões do lugar, aqui está o link:

    http://andandoporaii.blogspot.no/2007/12/paramaribo.html

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  3. Oi Marcela, obrigado pelo comentário.
    Acho até pouco o que a "moderna" e "progressista" França paga para os moradores de uma colônia, a Guiana Francesa, em pleno século XXI. É o único território na América ainda vivendo nessa humilhante condição. A única solução digna seria a independência daquele povo.
    Lerei sim seus textos.
    Abraços!

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